“Este festival parece o Cancelamento Sound e já precisava de um bocadinho de sorte”. A frase, que se lê quase como um lamento, foi dita por José Barreiro, director do Primavera Sound Porto. Não foi uma edição fácil para o festival com o melhor cartaz de 2024. Antes ainda de tudo começar, entre motivos pessoais, estados febris ou existências encurtadas, Kim Petras, Julie Byrne e Steve Albini – que viria como membro dos Shellac – cortavam-se à festa. Depois, já com o barco em andamento, problemas de montagem – e cálculos de peso falhados – levaram ao cancelamento do concerto de Justice, que prometia um festival de pirotecnia ao nível da passagem de ano na Madeira e jogos de luzes capazes de rebentar com tudo o que fosse quadro eléctrico na vizinhança. Um cancelamento que se estendeu também aos Classe Crua, projecto com Sam The Kid. Como se não bastasse, também Ethel Cain decidiu ficar por casa a beber chá com limão e mel, naquele que prometia ser um dos grandes momentos desta edição. Houve ainda a grande chuveirada de sábado, já um dejá vu da Invicta que se enfrenta com uma boa capa, galochas à séria e espírito britânico.
Ao longo de três dias, passaram pelo Parque da Cidade – números avançados pela promotora Pic-Nic – cerca de 100 mil pessoas, 40 mil no dia que recebeu santa Del Rey – o único com lotação esgotada. Em 2025, o Primavera Sound estará de regresso à cidade do Porto entre os dias 12 e 14 de Junho. Por aqui, as apostas vão para períodos de chuva com boas abertas.
Ficam alguns destaques desta edição, em postais de poucas linhas.
Em tempos onde a Flixbus atirou com a Rodoviária Nacional e outras companhias nacionais ao alcatrão, foi a bordo de um Expresso Transatlântico – modelo descapotável – que atravessámos uma tempestade que nenhum Zandinga da meteorologia conseguiu previr. A banda de Rafael Matos e irmãos Varela – Sebastião e Gaspar – soa bem em disco, mas é ao vivo que o seu baile futurista ganha asas, convidando a um abanar de anca e outros movimentos mais arriscados. Houve homenagem a Pedro Gonçalves dos Dead Combo, Sebastião a surfar em tronco nu e uma festa que com mais umas cervejas tinha sido de espuma.
Foi um pássaro? Um avião? O Super-Homem a fazer loops antes de tratar da saúde a Lex Luthor? Nada disso, minha gente. Qual capitã de um navio pronto a enfrentar vagas épicas, num cenário preparado para uma tempestade que acabou por não rebentar, Solána Imani Rowe, mais conhecida pelo nome artístico de SZA, ofereceu-nos um tsunami de concerto, deslizando entre a Ilha da Melosidade e o Cabo da Trepidação,
Não faltaram clássicos prováveis como “Kill Bill” ou “All The Stars” e, mesmo contando com uma rede de segurança de vocais pré-gravados, SZA mostrou que continua a ter suficientes barras de dinamite para rebentar com o RnB, transformando-o em irreverência sem precisar de artifícios para singrar no cosmético universo do hip hop. Depois desta noite, estaremos sempre prontos para acudir aos seus pedidos de SOS.
Terá sido, desculpem-nos os convertidos, o concerto menos vibrante dos que Lana Del Rey deu em Portugal. As culpas dividem-se entre o estranho alinhamento e uma pose que, em certos momentos, pareceu adoptar o modo cruise control, como na descida à grade para um momento que é já de marca – seja para tirar um par de selfies ou assinar capas de discos e outra memorabilia Laniana.
O concerto estava tão ganho à partida que, no meio de tanto fervor, foram muitas as vezes em que Lana posou o microfone, deixando que fossem os fãs a dar letra ao manifesto. Até o vestido branco que usou em 2012 deu lugar a um vestido creme mais senhorial, como que querendo dizer que se fartou de jogar Video Games preferindo agora jogar bridge no Country Club. Foi bonzinho, vá lá, mas demasiado bem comportado.
Polly Jean Harvey, PJ Harvey para os amigos musicais, tem sido um parente mais ou menos afastado de David Bowie, com múltiplas invenções e reinvenções ao longo de um profícuo caminho. Já andou pelo punk, arriscou o trip hop, mergulhou no espírito baladeiro ou viajou a bordo de um ovni com a matrícula “Let England Shake”, um álbum político que olhava de lado para uma sociedade que teima em repetir e expandir várias formas de violência.
Na Primavera da Invicta, PJ correu a duas velocidades, indo do sôfrego meio fundo aos 110 metros barreiras. Acompanhada por uma banda de eleição, onde se destacava o colaborador e amigo de longa data John Parish, PJ mostrou a miúdos e graúdos que o punk não é, decididamente, uma questão de vestuário. God Save The Queen.
Foi, na edição de 2019 de Paredes de Coura, o concerto mais marado, que alguns poderiam ter confundido com o lançamento mundial de uma nova colecção ou marca de mobiliário. Qual colegial com protecções nos joelhos, num mundo animé onde o varão cedia o lugar a uma secretária – que parecia representar a violência e a pressão social exercidas sobre a mulher -, Mitski actuou como contorcionista, cantora, ginasta, showgirl e actriz, fazendo de uma mesa o planeta no qual levantou o dedo do meio ao capitalismo, fechando cada faixa ao estilo de uma ginasta olímpica num misto de beleza, sensualidade e estranheza.
Cinco anos depois, Mistki continuou a mostrar-nos a sua obsessão pelo ramo mobiliário, agora rodeando-se de cadeiras que decoravam um Cabaret parcamente iluminado. A cantora nipo-americana parece ter envelhecido de acordo com uma alma torturada e um elevado índice de descrédito em relação ao mundo, e os seus 33 anos parecem curtos para tantas e tamanhas preocupações, partilhadas com um séquito fiel que trauteou alguns dos refrães mais emblemáticos. Num cenário espartano, quebrado por variações de luz milimétricas, instalou-se alguma monotonia, ajudada pelo facto de músicas como o efervescente “Geyser” terem sido servidas quase sem gás. No combate desigual de Mitski contra o mundo, (desta vez) ganhou o mundo.
Os The National são assim como aquele amigo de longa data, com quem já nos chateámos algumas vezes na vida mas que, em caso de aperto emocional, é a quem ligamos primeiro para o conforto de um ombro amigo. À 22ª vez em Portugal, a banda de Matt Berninger e companhia esticou a corda para lá das duas horas, mostrando que há amores – ou relações proibidas – que estão destinados a durar para sempre. Num cenário bem montado, com a banda filmada a meia luz ao bom estilo experimental alemão, houve crowd surf (ou algo parecido), comício político e um Berninger numa forma extra-terrestre. Como diz o ditado que acabámos de inventar, não há 22 sem 23.
Por volta de 1494, Leonardo Da Vinci pintou A Última Ceia, recriando o momento bíblico em que Jesus compartilhava a sua última refeição com os discípulos e, algures entre o café e a sobremesa, atirava para o ar que um deles o iria trair. Já em 2021, um quinteto de brits decidiu organizar um jantar com mais teor alcóolico, a que decidiu dar o nome de The Last Dinner Party, numa variação mais animada que a do formalismo bíblico. A traição, essa, continua a marcar presença, a ela se juntando a luxúria, o arrependimento e a bela da vingança. O resultado foi “Prelude to Ecstasy”, uma das melhores rodelas que poderão ouvir este ano.
No Primavera do Porto, a missão do quinteto formado em Brixton não era fácil: servir de aperitivo a Lana Del Rey, perante alguns milhares que, arriscamos, apenas conheceriam a cover que a banda fez de “Wicked Game”, tema eterno de Chris Isaak – que fez dele o Macauley Culkin da música. À boleia de Abigail Morris, espantada com a moldura humana que se estendia à sua frente, as The Last Dinner Party deram tudo, conseguindo pôr meio mundo a gritar “Gimme The Strenght”, pincelada maior de um retrato de uma rapariga morta – e não é que acabámos por voltar à pintura? Mais do que um aperitivo, um concerto que soube a sobremesa – o nosso preferido do palco principal.
Enquanto os Oasis e os Blur se divertiam a medir quem tinha a pilinha maior, os Pulp tratavam tranquilamente da sua vidinha. Para a história da música, deixaram quatro extraordinárias rodelas – “His `n` Hers” (1994), “Different Class” (1995), “This is Hardcore” (1998) e “We Love Life” (2001) -, cada uma delas capaz de levar para casa o mesmo Pullitzer que decidiram – e bem – entregar a Kendrick Lamar. Liderados pelo escriba Jarvis Cocker, os Pulp serão porventura os melhores contadores de histórias da música pop, seja suspirando sobre as expectativas dos dias de criancice que morrem na idade adulta, o aborrecimento adolescente, o destino ou a fatalidade das relações, o medo da intimidade, o temor da parentalidade ou um retrato da desigualdade social – “Common People” será sempre a música de muitas vidas (das nossas é certamente).
No Porto, Jarvis Cocker esteve irrepreensível, assinando na companhia de Candida Doyle, Nick Banks e Mark Webber o melhor dos (apenas) três concertos que a banda deu em Portugal – uma pena não terem alcançado o estatuto de clientes frequentes como os The National. Num cenário visualmente deslumbrante e de extrema elegância, a banda desfiou temas como se fossem clássicos da Penguin, apenas faltando o segundo encore com “Razzamatazz” – tal como havia acontecido em Barcelona. Daqui a uns anos valentes, quando perguntarem a quem primaverou este ano “do you remember the last time?”, yes será a resposta garantida. O melhor concerto do Primavera Sound Porto 2024.
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Fotos: © Hugo Lima
www.hugolima.com | www.instagram.com/hugolimaphoto
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Nota: Para além de ser uma expressão muito dada às gentes da meteorologia, “Céu Nublado Com Boas Abertas” é também o título do recomendado romance de Nuno Costa Santos (ler entrevista).
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