“A música terminou, mas a canção não acabou”. O aviso tinha sido deixado por Manuel Fúria em “Canção Infinita”, a derradeira e sentimental malha de “Viva Fúria”, longa-duração assinado em 2017 por Manuel Fúria e os Náufragos. A canção mais confessional deste esmerado disco, num registo diarístico que pedia uma continuação. Cinco anos depois do naufrágio, Manuel Fúria arruma a viola no saco e troca o rock pela electrónica, gravando uma biografia musical onde se descobre muita nostalgia, preces e lamentos religiosos, fotografias esbatidas de amigos encontradas no fundo de uma gaveta ou um elogio ao chão onde nasceu, e que não é mais do que uma memória breve, sujeita à inclemente erosão do tempo. Depois de ir ao fundo, Manuel Fúria renasce e prossegue a ironia musical, agora metamorfoseado em Os Perdedores, o novo projecto cujo disco homónimo será lançado no dia 14 deste mês, estando a apresentação marcada para o dia seguinte no festival literário Arquipélago de Escritores (15 Outubro, 22h00, Museu de Angra do Heroísmo – Terceira). Por aqui, propomos uma viagem faixa a faixa em jeito de teaser, a convidar a imaginação a compor uma banda sonora.
Nem Fome, Nem Mundo
Começando pelo fim e o mantra “Acabou”, Manuel Fúria partilha com o filho algumas das suas memórias e perdas, como o videoclube onde alugou preciosidades como “O Meu Tio” e “Os Marginais”, a bela farinheira vendida na mercearia da Senhora Beatriz, as camisas do avô com dedo de alfaiate, as tardes passadas – “de bolsos lisos” – na loja de discos Orfeu ou o desaparecimento de instituições cinéfilas como o King, o Monumental ou o Londres. À pergunta do filho – “E agora pai?” -, Fúria descobre a cura para a perda rumo a uma possível transformação: “Tenho de me esvaziar”. É em “Nem Fome, Nem Mundo” que começa esta viagem à memória, conduzida por Os Perdedores, onde desde logo se pressente que caberá à electrónica conduzir a palavra, aqui com um embalo soul empurrado por uma memória feliz: “I had a glimpse of beauty today/ And it saved my soul”.
Catedral de Notre Dame
À boleia dos Jungle, um piano parece querer ecoar para sempre, abraçado pelos teclados que vão sacando graves brutais às teclas pretas e brancas. A Catedral de Notre Dame pode ter caído, mas não a fé de Fúria, que recusa “Palavras fáceis/ Caminhos Fáceis / Ou deuses fáceis” para abraçar a cantiga como uma arma.
Blandina de Lyon
É a partir de um adufe em estado techno, a convidar a um salto à pista de dança, que viajamos através de uma história mais ou menos recente para conhecer algumas das perseguições movidas a cristãos, entre Cabo Delgado (Moçambique) e o Burkina Faso. Uma canção que é quase o Evangelho Segundo Manuel Fúria, um assumir sem vergonha da religião em tempos nada fáceis para o catolicismo – e que termina, já sem o balanço de anca, com o poema “Filha da Antiga Lei”, de Adélia Prado (Divinópolis, Minas Gerais, 1935), onde o amor e o medo parecem estar lado a lado:
Deus não me dá sossego. É meu aguilhão.
Morde meu calcanhar como serpente,
faz-se verbo, carne, caco de vidro,
pedra contra a qual sangra minha cabeça.
Eu não tenho descanso neste amor.
Eu não posso dormir sob a luz do seu olho que me fixa.
Quero de novo o ventre de minha mãe,
sua mão espalmada contra o umbigo estufado,
me escondendo de Deus.
O Novo Normal
Atrás de um teclado que poderia estar numa das temporadas de Stranger Things, soam disparos a anunciar a efemeridade da existência: “As pessoas quando morrem/ São troncos magros/ Partidos no chão”. Há flores que “crescem onde calhar”, vulcões que “esperam em qualquer lugar”. Uma canção em forma de enigma onde se abraça, já sem consternação, o novo normal, ilustrado com a imagem de “…olhos reflectidos/ Num rio sem caudal”.
Prece 909
Começamos com um sample claramente sacado à “Revolution 909” dos Daft Punk, e só falta mesmo aquela sirene e o ameaço feito em dois versos: “Stop the music and go home / I repeat, stop the music and go home”. No seu lugar, a juntar a um techno desvairado propício a uma voltinha nos carrinhos de choque da festa da aldeia, isto já com uma série de minis no bucho, há o contraponto das raízes da música portuguesa – a “Oração” de António Calvário, por exemplo, passa por aqui -, tudo muito bem embrulhado numa confissão auto-proposta: “Eu sinto uma disposição/ Eu sinto uma inclinação/ Para falar, ouvir falar/ Daquilo que amo”.
Bicicletas de Montanha
Lembram-se daquela imagem gloriosa, mesmo no final do ET, quando a criançada pedala desalmadamente nas bicicletas para levar o amigo alien a nave segura? Pois bem, aqui está longe de haver CIA ou algo que o valha, mas é de bicicleta que subimos à montanha para, felizes da vida, “Cruzarmos gloriosos/ Olhos para lá”. Uma viagem sem mapa, GPS ou quaisquer outras aplicações, rumo ao “coração do mistério” e ao “promontório do medo”, onde se percorrem “caminhos de terra”, se visita uma “casa abandonada”, se foge aos dentes de um cão e aos tiros de um velho, ou se partem vidros antes de ter o vento a soprar nos cabelos, com o som dos “Offspring a partir” no walkman.
Interlúdio
Respirar, por uns segundos, com a calma de um piano clássico, parados no passeio, de olhos fechados, enquanto o som da multidão passa rente à pele.
Os Perdedores
No cristianismo, já se sabe que a maçã é uma espécie de fruto proibido, que atirou com o homem e a mulher para fora do Paraíso, entregando-lhes o livre arbítrio mas, também, uma vida bem menos desafogada. Apesar do medo infantil, que o fez apenas sonhar com o que se escondia por baixo da casca, Manuel Fúria decidiu agitar bandeira e seguir caminho, “Nessa grande bebedeira/ Que ainda não ressaquei”. Uma música onde, aqui já com uma guitarra eléctrica planante em fundo, Fúria revisita os tempos em que teve uma banda, em que foi o maior, antes de o tempo ter feito “o que o tempo faz melhor”. Recorda-se, sob o olhar atento de Deus, a “…cidade onde cresci/ Homens fétidos e flores/ Meninas de barro/ Carregadas em andores”, num tempo em que era mais fácil existir e que, por linhas travessas, conduziu a um estado mais elevado. Como escreveu Charles Dickens em “Grandes Esperanças”, aqui cantado por uma voz feminina, “I`ve been bent and broken/ I hope, into a better shape”.
Malta Que Se Foi
“All My Friends”, tema épico dos LCD Soundsystem, é o motor de combustão para esta viagem pelas amizades que ficaram pelo caminho: o Paulo, que se baldou a um ensaio para ficar “…todo mocado/ Com os jagunços do irmão”; o André Lopes, que apesar de ter chegado mais tarde a Nick Drake o percebeu melhor, e que “Andava sempre mal acompanhado/ Desaparecia, para não ser apanhado/ Encarava-me esquivo/ Maldito olhar vidrado”; o Zé, um “miúdo particular” mas “demasiado perdido”. Ou, ainda, “Luís Miguel, Tiago, Xico, o outro Xico, Isabel, António, reticências…”, “A minha malta que se foi”, e que tem recebe aqui uma elegia punk, como fotografias retiradas de dentro de uma caixa, escondida durante décadas, e que são vistas com aquela emoção que só a memória de um tempo irrecuperável confere.
Católico Menino Manco
O disco fecha em clima de festa, com uma música confessional onde cabe o nascimento em Lisboa, o crescimento “…numa pequena cidade/ Do Norte de Portugal”, onde se acordava cedo e se andava “Da casa para o Colégio,/ Do piano para a rua”. Tempos de inocência, em que “Mal sabia que toda a história/ Tem sempre um fim”, e onde se pressente a escolha de um catolicismo algo travesso, “Território encravado/ Geografia de forças/ Entre o Céu e Las Vegas”, enquanto se ouvia o best of dos Rolling Stones e a leitura era descoberta com “Meu Pé de Laranja Lima”. Manuel Fúria, “manco”, “católico”, “menino de seu pai”, “icónico”, “hipnótico”, “licórnico”, “tendencialmente melancólico” e muitas vezes “radiofónico”, se confessa.
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