Passava pouco das cinco da tarde quando Luís Severo, em terra de S. João, aconselhava Santo António a ir pela sombra, prometendo guardar-lhe um lugar para quando regressasse da peregrinação. Sombra que, aliás, foi coisa que não se viu no dia de fecho da edição de 2018 do NOS Primavera Sound, a não ser que por sombra se considere um dia carregado de nuvens negras e uma chuva tipicamente britânica, daquela que em vez de cair a preceito vai pingando durante horas de uma torneira mal fechada por um S. Pedro vingativo.
Severo que trocou a solidão do piano pelo clima de banda, tentando recriar os arranjos ambiciosos e a demanda pelo amor da sua homónima e segunda rodela, lançada em 2017. Porém, quando o escutamos numa versão mais exposta de “Meu Amor”, fica a ideia de que teria sido bem mais entusiasmante e certeiro um concerto sem esta “Boa Companhia”, que por vezes parecia navegar numa pauta diferente da de Severo, cujo registo vocal surgiu mais preso do que no livre curso das teclas.
Os australianos Rolling Blackouts Coastal Fever não praticam futebol apesar do nome enganoso, antes uma indie pop/rock que parece chegar de uma descontraída sala de ensaios, tal não é o à-vontade com que o quinteto de Melbourne surge em palco. Uma sonoridade que tanto remete para a guerrilha sónica e gingona de uns The Clash – mas sem o ska -, a irrequietude do primeiro ano dos Kaiser Chiefs ou o espírito crooner da conterrânea Courtney Barnett.
Quanto à americana Kelela, que depois de uma mixtape e de um EP bem recebidos lançou em 2017 a sua primeira rodela – “Take Me Apart”, um lugar onde a electrónica casa de coração aberto com o espírito vocal dos anos 1990 -, aproveitou o lusco-fusco para protagonizar uma deliciosa R&Bnata à chuva.
Kelela que não se cansou de agradecer o apoio – sobretudo da fanzone, que ocupava a frente do palco sem recurso ao impermeável – recebido, afirmando que é sempre uma incógnita subir pela primeira vez ao palco de uma cidade da qual não se conhece a relação que tem com a sua música.
Na companhia de um DJ, Kelela atravessou temas tão variados quanto “LKM”, “Frontline”, “Blue Light” ou “Go All Night (Let Me Roll) – sacado à mixtape “Cut 4 Me” -, numa actuação que à sensualidade da voz juntou a do movimento, e sobretudo uma forma de comunicar que conquistou adeptos: “If I were Brown I would be blushing”, disse a certa altura. Na recta final, depois de brincar dizendo que era a primeira vez que lhe tinham dado “extra time”, aproveitou para uma versão inspirada, arrebatadora e muito dançável de “Rewind”, que poderia ter ficado a tocar “for the rest of the night”. Numa edição que deu privilégio ao hip hop mais duro, o R&B de Kelela foi puro deleite.
A despedida do Deus Me Livro a esta edição do NOS Primavera Sound fez-se ao som dos Public Service Broadcasting, que têm a fama mas também o proveito de serem uns nerds a dar para o cromo.
Com projecções no ecrã de filmes negros e de outros quadrantes e imaginários cinéfilos, que incluíam excertos sonoros de várias películas – muitas delas com carros a alta velocidade -, os londrinos serviram de bandeja a sua pop de vertigem matemática, ideal para quem, como nós, se ia fazer à estrada pouco depois, com o dilúvio à espreita e o desgosto por não celebrar a vinda à terra do deus Cave – ou mesmo do príncipe Frahm. Para o ano, o NOS Primavera Sound já tem datas marcadas: 6, 7 e 8 de Junho. Por aqui não pedimos nomes. Apenas que não chova.
Fotos: © Hugo Lima
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