O músico e produtor Miguel faz parte da nova vaga do R&B, um estilo musical que tem vindo a mudar nos últimos anos. Artistas como Frank Ocean e The Weeknd trouxeram uma transformação ao género, abordando formas clássicas de uma maneira mais estranha e oblíqua.
Miguel identifica-se com este chamado Indie R&B. Aprecia a definição porque, na sua opinião, refere-se a músicos que, tendo as suas raízes na soul, tentam elevar a música a um lugar mais artístico, num género que se tinha tornado muito conservador desde os anos 90 do século passado.
Apesar de encaixar na definição de arty, “Wildheart” (RCA Records, 2015) – o seu novo disco – não é uma aventura intelectual. Aliás, não podia ser mais carnal. Miguel parece ter decidido que, uma vez que vai parar ao inferno o melhor será divertir-se bastante até lá chegar. Muitas das suas músicas falam de sexo, drogas e pecado, às vezes em simultâneo. Músicas como “The Valley” ou “FLESH” são hinos sexuais, verdadeiras músicas para fazer meninos, com ritmos eróticos entrelaçados com a voz suave do cantor.
Nesta mistura de R&B, funk, hip hop, rock e electrónica, conseguimos ver as pegadas de Bowie, Stevie Wonder, Marvin Gaye e uma pitada de Phil Collins (só um bocadinho, para não estragar). Ao contrário de The Weeknd, a música de Miguel é muito menos focada no hip hop, usando guitarras em abundância: veja-se “Beautiful Exit”, a música que abre o disco, sustentada por um potente riff desde o início. É esta mistura de rock com soul dos anos 70 que nos leva à influência mais óbvia – Prince –, inclusive no registo vocal do cantor.
“Deal”, com a sua linha de baixo dos seventies, é um funk cósmico que faz lembrar os Red Hot Chilli Peppers dos primeiros discos. “The Valley” é a faixa mais sensual do álbum, mais electrónica, com uma produção arejada e espaçosa. É música para maiores de 18 anos – “Fuck you like i hate you baby”, canta Miguel.
De seguida temos o primeiro single “Coffee”, uma das mais músicas mais inspiradas do disco. É a música da manhã seguinte, terna, com ritmos e batidas subtis acompanhadas por um sintetizador dos anos 80.
“NWA” leva-nos para um filme de Tarantino, com as suas batidas tribais e guitarra surf-rock. O rapper kurupt encaixa como uma luva na música, acompanhado por um baixo potente. Segue-se “Waves”, mais upbeat e pop, onde Miguel celebra o mar e canta “Bodysurf on me”.
Apesar de toda a sensualidade das letras, a música mais reveladora do disco é “What’s normal anyway”, uma meditação clara e honesta sobre a identidade de Miguel como negro, latino e ser humano. É uma canção de ambiguidades, que reflecte a temática geral do disco, a dualidade entre dúvida e confiança, romance e sexo, o sagrado e o profano.
“Hollywood Dreams” assenta na ambivalência entre a ilusão da fama e o preço a pagar por ela. Um riff de guitarra com tons de grunge transporta a canção, há até um piscar de olho a Bowie: “we could be better than heroes”, ouve-se no refrão.
“Destinado a morir”, mais electrónica, lembra The Weeknd, com o seu ritmo denso e pesado. “Going to hell” é uma balada rock, onde Miguel canta “only you can save me, i’m a sinner”. É curioso que haja tantas referências a pecado, anjos e religião num disco tão lascivo.
“Flesh” continua com uma batida minimal e a voz de Miguel, em falsetto, a cantar “Woman put me just we’re i belong”. O Prince de “Sign O’ The Times” passeia por aqui.
“Leaves” tem uma guitarra que faz lembrar “1979”, dos Smashing Pumpkins, e é uma canção de amor à “Sweet California”, onde Miguel cresceu. O álbum termina com “Face the sun”, que conta com Lenny Kravitz na guitarra. Batidas subtis levam a música até ao solo de guitarra de Kravitz.
“Wildheart” é o disco de um artista dividido: há o “deus do sexo”, um Prince para o século XXI, que muitos dos seus fãs o querem ver encarnar, mas há também o artista mais ecléctico, mais indie, que Miguel parece favorecer. No futuro veremos para que lado pende a balança.
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