Teria sido um mimo que o concerto de Micah P. Hinson, ao invés de ter decorrido na caixa de música mais famosa de Lisboa, se tivesse realizado num outro lugar mais dado ao sagrado e à pura contemplação, como a Igreja de St. George ou a dos Franceses. Não apenas pelo facto de o Musicbox oferecer efeitos sonoros extra, como o abrir e fechar da caixa registadora, o zumbir das máquinas refrigeradoras ou o já célebre maquinar do ar condicionado mas, sobretudo, porque “Presents The Holy Strangers” é, na sua génese, um disco sobre o sagrado e a relação falhada do homem com Deus.
Um disco à moda antiga, e isto dito e escrito num duplo sentido: em primeiro lugar porque é um disco conceptual, que conta a história nada feliz de uma família durante um período atravessado pela guerra; depois, porque Micah se lembrou de trabalhar em fita, usando teclados de mistura e velhas mesas poeirentas, recorrendo ao digital apenas para dar uma mãozinha na pré-masterização.
É, também, um disco que vive dos arranjos grandiosos e da multiplicidade de instrumentos e vozes que nele habitam, razões para que Micah lhe tenha chamado, num livro que foi publicado e que conta a história de Holy Strangers, de “ópera folk moderna”. Ou, como disse na noite de 14 de Novembro, “uma fábula moral sobre o que é ser humano e ter fé“. Um disco que, por vontade de Micah, andaria perto das três horas de duração, uma ideia de grandiosidade que foi também cortada pela editora que o espremeu em 14 temas. Micah prometeu que entre Janeiro e Fevereiro do próximo ano a coisa chegará em formato completo ao Spotify, e que “you fuckers” poderão ouvir tudo sem ter de lhe dar um centavo.
Para desgosto de Micah, porém, a tiragem do livro andou à volta dos 200 exemplares e não foi passado como extra na compra do CD, o que fez com que o compositor americano, que não nutre grande simpatia pelo mundo discográfico corporativo, lançasse um “é tudo uma questão de dólares, o que aconteceu à arte?“.
Retomando “Presents The Holy Strangers”, muito se perdeu na transposição do disco para o palco do Musicbox, tendo em conta que o concerto apenas contou com Micah, uma guitarra e alguns pedais – e, também, com uma equalização e definição sonoras que deixaram algo a desejar. No lançamento do concerto, Micah referiu, dizendo não saber se se trataria de uma traição, que esta viagem religiosa iria incluir temas de outras rodelas, que julgava ter presentes a mesma ideia e sede de religiosidade de Holy Strangers. Curiosamente, foi no encore que a actuação de Micah se transformou em epifania, à boleia de temas como “Beneath The Road”, onde a electricidade e a berraria deram lugar a um tranquilo dedilhar e a um cantorio com ar de sermão feliz.
Pelo meio não faltou conversa de fundo ou de circunstância, como descrever geograficamente a tour através de um mapa invisível, falar de “Lover’s Lane” como a história de uma família cujos bens e pertences que reuniu foram todos roubados – não serão assim todas as histórias de riqueza? -, afirmar que do reino dos mortos apenas John Denver gosta que toque as suas músicas – recordando o disco e tour fracassados nas alturas em que decidiu entrar em modo covers -, do acto de fumar em palco como uma arte performativa – e de estar apenas a 4 anos da idade em que o tio morreu de cancro de pulmão – ou da diferença entre country e cunt country, relembrando uma infância e adolescência problemáticas e a terra onde nasceu Van Zandt ou Josh T. Pearson. Acabou agradecendo aos que convictamente marcaram presença no Musicbox, bem como aos amigos destes que chegaram como penduras e que poderiam agora querer colocar um ponto final na amizade. Que da próxima vez o sermão se possa realizar num lugar de culto e com sacristões a ajudar à missa. Um grande Amén para si Mr. Micah.
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