Finalizamos hoje o nosso passeio pelo Parque da Bela Vista, que recebeu nos dias 29, 30 e 31 de Agosto a 3ª edição do Meo Kalorama. Seguem-se os últimos postais de poucas linhas, juntamente com uma carta de amor eterno a uma diva chamada Raye – que concerto, minha gente, que concerto. Para o ano há mais Meo Kalorama, tratem de apontar nas vossas agendas: 28 a 30 de Agosto de 2025.
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Foi com um sol de chapa e à hora do chá que Fabiana Palladino, a britânica com um apelido que exala perfume italiano, se estreou em Portugal. A expectativa era alta, à boleia de uma homónimo disco de estreia que esteve 13 anos a marinar, entre músicas publicadas online e a assinatura com a Paul Institute, editora que teve como co-fundador Jai Paul. Um disco onde pareciam caber, entre outras coisas mais ou menos inesperadas, a amplitude vocal de uma Whitney Houston, as cordas soltas dos Dire Straits ou uma vibe muito Princiana, a tudo isto acrescentando um pequeno tsunami de criações próprias de Palladino. Puro engano. Talvez tenha sido a hora precoce ou a falta de umas luzes de tons sensuais, mas Fabiana fez pouco mais que figura de corpo presente, num concerto que acabou dominado pelo aborrecimento. Porca miseria.
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Foi em modo Canal Panda meets Morangos Com Açúcar que Cláudia Pascoal, a grande impulsionadora do Fado Chiclete, entrou em cena, cercada por dálmatas de louça, telefones com auscultadores à antiga e telefonias com botões para se poder escolher livremente entre AM, FM ou MW, isto num cenário pronto para celebrar os santos populares. O concerto no Kalorama foi tudo menos aborrecido, incluindo momentos de karaoke, duetos fantasiosos com Manuela Azevedo – “não havia cachet”, brincou antes de uma divertida encenação que Azevedo classificou de “ideia meio parva” -, um momento Spotify, a aplicação do jingle “Extremamente Desagradável” – que compôs para o programa radiofónico de Joana Marques, que também passou pelos ecrãs do Kalorama num excerto de uma entrevista a Pascoal -, a situações como ter gente a encostar-se nas filas de supermercado, a perguntar-nos o signo ou a falar excitadamente do tempo, um bailarico com o rei Mike El Nite, um mash up de Madredeus e António Gedeão, um cover de “Oliveirinha da Serra” dedicado à avó e uma música de um só acorde num despique entre duas equipas do público. Durou e bem esta chiclete.
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Entre o puro Cosplay e uma blusa de treino da equipa rugby da Nova Zelândia, sacada à pressa da gaveta da roupa para dormir. Foi mais ou menos este o outfit escolhido por Moonchild Sanelly para a sua estreia em Portugal, num concerto que, a julgar pelas aparências, não prometia assim tantos mundos e fundos: sem banda, cenário, adereços ou fogo-de-artifício de explosões máximas ou mínimas. “Apenas” um teclista/DJ, vestido num orgulhoso cor-de-rosa por companhia, que veio a revelar-se um enérgico bailarino e um efusivo agitador de massas.
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A verdade é que a sul-africana assinou um dos grandes concertos desta edição do Kalorama, ao qual não faltaram twerks bem medidos, a recusa de aceitar o término de uma relação que lhe foi imposta no lockdown – “I was undampable”, disse no lançamento de “Over You” -, a lembrança de que para cada “Demon” há sempre um “fuck you”, uma canção que fecha a porta ao regresso dos ex`s – “With Love To An Ex”, tema dos Gorillaz no qual Moonchild colaborou – ou uma carta de amor ao (seu) rabo – “Big Booty” -, com coreografia a preceito. Pelo meio, e perante a timidez da subida ao palco de dançarinxs anónimxs, decidiu descer e pular a grade, juntando-se ao público para dançar e fazer a festa. Rabulapha!
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Depois do Kalorama de Madrid, onde a tempestade fez das suas impedindo que Raye subisse ao palco, Lisboa recebeu o 21st Century Blues da cantora britânica, que assinou o melhor concerto desta edição do festival – e, arrisque-se, das três do Kalorama tuga até à data.
Visualmente, o cenário fazia lembrar o de um clube de jazz com estrela Michelin. Ao fundo, centrado sobre uns cortinados roxos e azuis escolhidos a dedo por um designer de interiores, um lettering garrafal mas sumptuoso de quatro letras: RAYE. O dress code escolhido foi o de uma Festa Branca, com Raye a deslizar num vestido comprido que a poderia abrir qualquer passadeira vermelha. Nas laterais, dois vinis gigantes, brancos e de edição limitada, com impressão a vermelho. Um com a cara de Raye, um outro com várias mãos a tocar-se, lembrando a capa de “Listen”, dos Urban Species. Há um piano e um pódio para os sopros, também eles envoltos no branco refinado deste clube onde Raye nos serviu a sua versão pessoal do século XXI.
“Sou uma pessoa dramática, adoro finais dramáticos, preparei muito drama para hoje”. Foi assim a entrada apoteótica de Raye, a que se seguiu um momento de jet lag: “Será que é a primeira vez que tocamos aqui? Tem sido um ano louco”. Estreia em Portugal confimada pelos atentos músicos, a que se seguiram mais dois dedos de conversa. “A playlist é fluida, vamos ver o que acontece”.
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Depois de uma entrada a pés juntos com “The Thrill is Gonne” e “Worth It.”, o terceiro tema é posto a votação ao estilo de um “Agora é Escolha”, tendo “Oscar Winning Tears.” recolhido o maior número de votos – e gritos.
Para cantar uma das suas músicas favoritas, senta-se no palco e faz um preâmbulo sobre a exposição que conseguiu com as muitas músicas em que colaborou, viradas para as pistas de dança, e que a levaram a repensar uma carreira que parecia, naquele momento, dedicada a encher o mealheiro pessoal. “Adição, que tema porreiro. Pode ser uma adição a queijo, ao chocolate, ao exercício – bom para vocês se for este último. As piores adições são as relações tóxicas”, disse na introdução a “Mary Jane”, uma “fucked up long song” que interrompe a meio para brincar com um dos seus versos: “Vinho tinto, quem é que bebeu hoje?”.
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Uma das pestanas postiças solta-se, e Raye aproveita para tirar a outra, prometendo que depois do próximo tema iremos partir para melhores vibrações. “Não gosto de cantar esta canção, mas é importante. A música é um medicamento, salvou a minha vida”. Uma vida que, a dado momento, terá sido como em “Ice Cream Man.”, marcada pelo assalto sexual e a violação.
“Afinal não é a última”, brincou depois, apresentando o épico “Genesis.”, tema de duas partes que Raye apresentou a preceito: “São sete minutos. Tem uma introdução muito triste, depois o baixo entra e nessa parte quero ver braços e boas vibrações”.
Olha depois para o relógio, começando a fazer contas de cabeça enquanto se debruça sobre a setlist: “Falta meia hora? Conseguimos, mas tenho de parar de falar”. Segue-se uma cover de “It’s a Man’s World”, capaz de competir com James Brown pela melhor interpretação. As apresentações dos elementos da banda são uma constante, encarnando o espírito de um concerto jazz na partilha do protagonismo.
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“Precisamos de pôr o sangue a correr. Vamos pôr a batida num 4×4, não que vos esteja a ensinar algo que vocês já não saibam”. O tema é “Black Mascara.”, numa versão grandiosa – mesmo que reduzida em tempo e mais dada ao espírito rock do que à dança. Antes disso e na abertura da pista já tinha rodado “Secrets”, composto a meias com Regard e capaz de subir a parada de qualquer festa.
Vê um cartaz de alguém que veio de Madrid e agradece a viagem, relembrando a infelicidade que foi não poder tocar no Kalorama de nuestros hermanos. Aproveitando as rotações em alta serve, em versão rock e abreviada, “Prada” – tema creditado a Cassö, Raye e D Block Europe -, longe do espírito original dos carrinhos de choque. A loucura prossegue com “You Don`t Know Me”, tema de Jax Jones no qual participou Raye, e por esta altura já os pés da multidão tinham ganho vida própria.
“Obrigado por aparecerem, não tinha a certeza se viria muita gente”, lança em jeito de brincadeira, agradecendo a todos os músicos e equipa. “Adoro estar em palco, quero estar nisto até ter 75 anos. Espero que alguns de vocês me possam ver nessa altura”, diz, falando também do poder transformador da música. A despedida fez-se com a canção que mudou a sua vida – e também as nossas -, de nome “Escapism.”. “Divirtam-se, façam amigos”, disse antes de sair de palco. Querem melhor mantra para a vida?
Fotos:
Mafalda Barros (Moonchild Sanelly)
Hugo Moreira (Cláudia Pascoal, Raye)
Vasco Prazeres (Fabiana Palladino)
Promotora: Last Tour
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