O Parque da Bela Vista recebeu, nos dias 29, 30 e 31 de Agosto, o Meo Kalorama – 3ª edição -, festival urbano que muito melhorou desde a sua edição de estreia: há mais oferta alimentar, não há palcos inclinados e os conflitos sonoros entre concertos não são mais do que festas meigas. As preocupações com a inclusividade e a acessibilidade são evidentes, seja pelas rampas construídas em cada palco para quem tem mobilidade reduzida, a linguagem gestual a acompanhar os concertos ou casas de banho não-binárias – que, além da questão de identidade sexual, democratizam as necessidades fisiológicas.
O cartaz foi bem desenhado mas, mantendo a tendência deste ano, não faltaram as baldas de última hora: Fever Ray apresentou um atestado médico e, quanto aos Soulwax, ficaram com o equipamento arruinado depois de uma chuvada das grandes no Kalorama de Madrid.
Segue-se uma visita pouco guiada à edição de 2024, servida em postais de poucas linhas – e duas cartas pelo meio -, começando pelo dia que nos trouxe uma radiografia actualizada do estado do mundo, assinada pelos Massive Attack.
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Poderá uma banda não gravar um disco de originais há 14 anos e, ainda assim, manter intacta toda a sua relevância? Se essa banda for os Massive Attack, então pode. Com várias passagens por Portugal, este concerto no Meo Kalorama pode bem ter sido o mais emotivo, uma súmula da música de intervenção deste britânicos – ou melhor, da dupla Robert Del Naja (“3D”) e Grant Marshall (“Daddy G”), bem acompanhados por Horace Andy, Elisabeth Fraser e Deborah Miller – a que se juntou um olhar crítico sobre o genocídio da Palestina, um salto à Ucrania ou um mergulho de cabeça na futilidade moderna.
“Eu queria mesmo ser eu, percebes?”. Foi a partir desta ideia, expressa num excerto de um vídeo a preto e branco, que o manifesto político arrancou, com o capitão Robert Del Naja a envergar uma braçadeira onde se lia a palavra “Palestina” – isso mesmo, em português. As questões existenciais foram muitas neste concerto, que é qualquer coisa como enrolar um charro em formato king size e depois não ter ninguém com que partilhá-lo: “What is the essence of beauty? Can silence have a sound? Is this a dream? Can I experience any wonder?”
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Neste cine-concerto político, onde aos hits da banda se juntaram momentos inesperados como covers de Ultravox, Avicii ou Gigi D`Agostino, as imagens valeram mesmo mais do que mil palavras: o Edifício Dakota – ou Dakota Apartments -, casa de ilustres moradores, localização para a rodagem de “Rosemary`s Baby” – filme de Roman Polanski – ou a última morada de John Lennon, assassinado às suas portas; em “Girl I Love You”, a um fundo onde se sucederam slogans políticos e movimentos partidários, acrescentam-se rostos reais, num álbum fotográfico de profissões onde couberam jogadores de xadrez, leitores de auras ou mergulhadores, todos eles apresentados depois como assaltantes; em “Black Milk” cruzam-se as geografias de Gaza (12 Outubro 2023) com da Ucrânia (22 Fevereiro 2022), fazendo-se um paralelismo irónico entre as fábricas de bombas e os salões de beleza de Oklahoma; “Take It There” é momento hashtag, lendo-se palavras de ordem como #ufology ou #endsuffering.
A grande surpresa deu pelo nome de Young Fathers, banda que subiu ao palco para protagonizar um trio de canções – “Gone”, “Minipoppa” e “Voodoo in My Blood” -, naquele que foi um dos grandes momentos da noite.
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Na segunda metade do concerto, os Massive Attack continuaram a dar cartas. A dado momento, a partir de um ecrã de aeroporto onde se liam os habituais “Gate Open” ou “Go To Gate”, acrescenta-se um “Border Closed”, aludindo às questões da migração.
“Inertia Creeps”, que numa entrevista 3D disse ser sobre uma relação destrutiva da qual nenhum dos elementos parecia conseguir sair, foca-se desta vez no circo da fama e na futilidade do que é ser notícia. Avançam-se teorias da conspiração – “Talvez as teorias da conspiração sejam uma conspiração”, arrisca-se -, mostra-se o mundo como um palco onde nada é real, dedica-se “Safe From Harm” à Palestina, exigindo-se o cessar-fogo enquanto os números vão aumentando num contador do genocídio. Avança-se a hipótese, entre estas imagens do passado, do presente e do imaginário, de o conceito de tempo não mais existir, colocando-se a hipótese de também a individualidade estar por um fio. “Eu queria mesmo ser eu, percebes?”, recupera-se, como que pedindo um merecido rewind. Talvez os rumores não sejam assim tão infundados: Robert Del Naja é bem capaz de ser Banksy.
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Natural do Rio de Janeiro e residente em Portugal, Muleca XIII – Samantha para questões mais burocráticas – surgiu envergando o verde e amarelo na horizontal. “Fui convidada para abrir os caminhos. Vamos pesquisar a história que não ensinam nas escolas, a história dos colonizados”, referiu, num concerto de métrica acelerada com algum improviso pelo meio. Pelo meio houve “Arrisca”, tema produzido por Sam The Kid, e alunos da Skoola – uma Academia de Música Urbana dentro do espaço do Village Underground, em Lisboa – a pisar o palco. Tudo para “mostrar a vida real. Rap é ritmo e poesia, essencial na educação e no desenvolvimento”. Máximo respeito.
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Foi ao som do tema de abertura de Gundam, série de bonecos japonesa com muito de ficção científica, que os Monobloc pisaram o Palco San Miguel. “Lançámos uma canção há um ano que gerou alguma loucura, tem sido muito bom. E agora estamos aqui em Portugal”, partilhou o vocalista Timothy Waldron, que evoca a pinta de Jim Morrison – isto se Morrison usasse cinto e metesse a T-Shirt para dentro. A canção dá pelo nome de “I’m Just Trying to Love You”, parte do alinhamento de um concerto com a vibe de uma tarde literária, de uma banda que cruza de forma interessante a atitude pós-punk com uma pop sensível. Qualquer coisa como “os Strokes e os Interpol entram num bar e…”. Podem chegar longe.
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“Senhoras em pé/ Sombras paradas/ Chega de chorar/ Deixem o homem morrer”. Eis Ana Lua Caiano e o seu folclore em estado punk, o mais perto que estivemos de brindar com a convalescente Fever Ray. Caiano funde com mestria a tradição de pelo na venta dos Deolinda com o poder de explosão de Conan Osiris – onde anda ele? -, juntando-lhe todo um passado histórico popular e uma música onde dominam as palavras, em versos embrulhados em camadas de loops, retalhos de teclados, sobreposições vocais e batidas com tanto de rancho como de festa tribal. Uma one-woman band que nos ofereceu, neste Kalorama, uma masterclass da arte do loop, explicada passo a passo. Pode ser um caso bem sério da música portuguesa.
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“Estou de coração partido com o cancelamento de Fever Ray. Ela era a razão de eu estar aqui, agora são vocês”. Bem-vindos ao stand-up musical de Beth Ditto, voz, rosto e corpinho dos Gossip, banda indie rock fundada em 1999, desmantelada por volta de 2016 e regressada no ano da graça de 2024, com o trio fundador e uma nova rodela – “Real Power” – que é mais do que apenas mais do mesmo – há, por exemplo, “Crazy Again”, bela malha que salta fora do cardápio Gossip.
Ainda que a voz tenha demorado a aquecer, fruto de estar sempre um velocidade máxima, Ditto foi um show à parte, assumindo o peso da idade – “Tenho 43 anos e estou cansada como o raio” -, saindo para trocar o vestido cor de rosa por uma T-Shirt preta de dormir, confessando o mau jeito na arte da depilação – “Vão ver muitos pêlos porque sou um pesadelo na depilação” -, declarando eterno respeito a Kendrick Lamar – “Pela primeira vez senti-me orgulhosa de ser americana, quando ouvi Kendrick Lamar” -, lançando o debate sobre o que é ou não uma banda – isto a partir de Fever Ray, a quem pediu ao público para desejar as melhoras em vídeo – ou queixando-se do calor. “It’s a cruel, cruel world to face on your own”, canta-se na despedida. Nunca estarás sozinha, Beth Ditto.
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No seu percurso escolar, Loyle Carner pode bem ter sido o aluno mais procurado para as apresentações orais, ele que tem uma dicção capaz de derreter o coração de qualquer professor(a) de língua inglesa. Neste regresso a Portugal, onde esteve com a família e o best friend tuga Diogo a aproveitar o sol – “Estivemos por cá toda a semana, nadámos e comemos na praia”, disse o britânico -, Carner mostrou que continua com o coração no sítio certo, em temas com um certo toque de auto-ficção onde reinam a sinceridade e as letras emotivas – como “A Lasting Place”, tema que escreveu no sofá sobre a avó. A dado momento fala de “Still” como a canção que mais medo teve de lançar, por nela dar conta do seu medo e fragilidade, sentimentos pouco ligados à ideia do que é ser homem: “Que se foda a masculinidade tóxica”, disse, acrescentando o belo que é ter um filho de 3 anos sem medo de expressar as suas mais frágeis emoções. “Sinto que vos toquei hoje”, lançou Carner antes de nos prendar com uma vénia e partir para uma versão imaculada de “Loose Ends”, não faltando um “Siuuu” ronaldês ou um “Free Palestine” na despedida. Respect.
Fotos:
Hugo Moreira (Muleca XIII e Gossip)
Lucas Coelho (Monobloc e Loyle Carner)
Rodrigo Simas (Ana Lua Caiano e Massive Attack)
Promotora: Last Tour
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