Entre o palco, a tela e o espaço sideral, os Memória de Peixe apresentaram, na Culturgest, o seu terceiro álbum, “III”. Um concerto que foi muito mais do que um simples alinhamento de canções ao vivo: uma travessia sensorial, uma performance que se desdobrou entre música e imagem, onde cada nota surgiu acompanhada por ecos de cinema e recortes sonoros de travo analógico.
O espectáculo teve início com um anfitrião saído de um filme de David Lynch — uma figura de voz grave e pose enigmática, recortada contra a cortina vermelha —, que nos lançou o convite: preparem-se para atravessar um portal rumo a outra dimensão de espaço e tempo.

Envergando os já icónicos impermeáveis amarelos — o guarda-roupa oficial da era actual —, os Memória de Peixe subiram ao palco com a nova formação-base: Miguel Nicolau nas guitarras, Pedro Melo Alves na bateria e Filipe Louro no baixo eléctrico. A eles juntaram-se Bernardo Tinoco, a criar ambiente com o seu saxofone alto, e João Hasselberg, presença discreta mas essencial, aos comandos da electrónica ao vivo — moldando as paisagens sonoras e as texturas que atravessaram todo o espectáculo.
Logo a abrir, a máquina de fumo na potência máxima mergulhou o palco numa névoa densa e carregada de mistério. A cenografia evocava uma sala de comandos retro-futurista: viam-se máquinas de aspecto arcaico, luzes intermitentes e pequenos ecrãs com estética sci-fi dos anos setenta. Ao centro, uma cápsula misteriosa — como se fosse um portal, ou uma cabine de teletransporte — exibia imagens que pareciam janelas para outras dimensões, criando a sensação de uma realidade paralela, entre o analógico e o onírico.

Em palco, a música dos Memória de Peixe ganhou músculo. Os temas soaram mais encorpados, mais físicos, com uma energia renovada. «El Vuelo» foi exemplo disso: tocado com grande entrega, arrancou a primeira ovação da noite. A bateria de Pedro Melo Alves, firme e segura, destacou-se ao longo do espectáculo, por exemplo, em «The Sun Inside Your Eyes», onde as suas batidas densas de sabor hip hop empurravam o som para territórios inesperados de groove. Miguel Nicolau, por sua vez, continuava a extrair o máximo da guitarra, recorrendo à panóplia de pedais de distorção que tinha aos seus pés.
O cinema, sempre presente, infiltrava-se nas projecções e nas atmosferas: uma introdução assombrada de filme de zombies antecedeu a sensualidade misteriosa de «Not Tonight», enquanto, em «Under the Sea», a sensação era a de estarmos submersos no oceano profundo.

Chamar-lhe apenas um concerto talvez seja curto. O que a banda apresentou na Culturgest foi, antes, uma espécie de filme-concerto — uma performance onde som e imagem caminharam lado a lado, alimentando-se mutuamente. O design de luz, criado por Ângela Bismarck, contribuiu decisivamente para a imersão total.
Neste território híbrido, os Memória de Peixe são pioneiros. Não há, em Portugal, outra banda que arrisque tanto na fusão entre música e cinema, entre palco e imagem, entre som e atmosfera. Mais do que ilustrar as músicas, as projecções dialogaram com elas, construindo uma narrativa sensorial que atravessa o espaço e se instala no corpo de quem os ouve. Os Memória de Peixe não criam apenas sons — criam universos inexactos e complexos, colocando-nos na pele de astronautas sonoros, preparados para explorar o que está além do visível. Valeu bem a pena embarcar nesta viagem.

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Fotos: Vera Marmelo (cedidas gentilmente pela Culturgest)
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