Mark Lanegan está vivo. Parece uma afirmação banal mas, para quem acompanha o percurso do cantor desde os anos 90, é uma coisa milagrosa. A sua vida sempre foi feita de excessos: foi dependente de álcool, heroína, crack, e sabe-se lá do que mais.
Amigo de Kurt Cobain e de Chris Cornell, viveu por dentro a explosão do grunge de Seattle nos anos 90, com todas as suas tragédias e excessos. Actualmente com 55 anos, largou há muito o veneno dos vícios. Desfruta de uma fértil carreira a solo e de um naipe quilométrico de colaborações, demasiadas para enumerar aqui.
O ano passado editou o fabuloso “Somebody’s Knocking”, uma densa nuvem negra carregada de melodia. De seguida lançou-se ao profundo poço das suas memórias: a autobiografia “Sing Backwards and Weep” chegou aos escaparates americanos no final de Abril deste ano.
Agora, aí está o novo disco, “Straight Songs of Sorrow” (Heavenly Recordings, 2020), que Lanegan encara como uma extensão do livro. Enquanto não conseguimos pousar os olhos na biografia, percorremos esta via sonora para as memórias do músico.
Neste disco encontramos de novo, no lugar de co-piloto, Alain Johannes, o mago de produção que deixou a sua impressão digital no último álbum dos Dead Combo, “Odeon Hotel”. Por estes temas passam mais uns quantos figurões da música: John Paul Jones, a lenda da guitarra dos Led Zeppelin; Warren Ellis, cúmplice habitual de Nick Cave; e Adrian Utley, dos Portishead, por exemplo. O disco é, no entanto, muito pessoal para Lanegan – nota-se o tom confessional, franco e honesto nas letras, tanto peso sobre os ombros que o próprio Lanegan se espanta por estar ainda entre os vivos.
O arranque é feito em estilo com “ I Wouldn’t Wanna Say”, electrónica mascarrada de carvão com uma batida mecânica, sobre a qual assenta a voz de pigarro de Lanegan. Segue-se “Apples From a Tree”, pequena melodia acústica, e a balada orquestral “This Game of Love”, que o músico canta com a mulher, Shelly Brien. É o tema mais curto do disco, mas também um dos mais memoráveis. As vozes complementam-se de uma forma que nos lembra Lou Reed e Nico em “I’ll Be Your Mirror”.
A sonoridade de “Straight Songs of Sorrow” continua a viajar pelas paisagens habituais dos últimos discos: estruturas electrónicas reminiscentes dos anos 80, pianos enxutos e vagarosos, uma síntese entre Depeche Mode e Joy Division, temperada com folk e blues e coroada por aquela voz poderosa.
Alguns temas assentam mais em atmosferas e humores – veja-se “Internal Hourglass Discussion”, ou “Churchbells, Ghosts”, experiências sonoras a precisar de mais tempo no forno para serem canções completas. Há momentos de génio, como a belíssima balada “Stockholm City Blues”, e a reverberante e majestosa “Skeleton Key”, procissão de mágoas rasgada pela voz.
No geral, a temática do disco não foge ao habitual: Lanegan canta sobre a morte – sobre a sua morte – e é espantoso que, tendo o pássaro negro andado à volta dele durante tantas décadas, o tenha conseguido evitar até hoje.
O álbum termina com o orgão celestial de “Eden Lost And Found”, uma espécie de redenção. O caminho de um patife em direcção à luz depois de uma infindável vida de escuridão. Mark Lanegan está vivo e continua a sua contenda com a morte através da música.
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