Começa o concerto e há um monstro na sala. Um monstro feito de ruído, feedback e distorção. Dir-se-ia um velho navio a ranger, agonizante, e a sua intensidade faz vibrar as paredes da ZDB. Sozinho em palco, o guitarrista Manuel Dordio tenta domar o monstro com a guitarra eléctrica e os pedais de distorção. Aos poucos dá forma ao ruído e o frenesim acalma: dá lugar à melodia e às texturas abstratas dedilhadas pelo guitarrista. São peças longas, tocadas pela surpresa e pelo improviso, num cruzamento improvável entre Portugal, o oriente, e a bossanova brasileira. A sonoridade lembra o disco de 2015 de Tó Trips “Guitarra Makaka”.
Dordio não é um principiante. Ainda que não tenha nenhum disco editado em nome próprio, já tocou com Benjamim (quando este era ainda Walter Benjamin) e João Coração, fez parte dos Minta & The Brook Trout e, hoje em dia, acompanha a cantora Márcia. O que impressiona é a destreza técnica do guitarrista, que fez uma apresentação competente, ainda que ensombrada por algum ruído de “fritura” na parte final do concerto. A assistência aplaudiu educadamente, mas não pareceu arrebatada pelo som experimental.
Às 23h20 entrou em cena Old Jerusalem, com “Florentine Course”, seguido de “A rose is a rose is a rose”, tema-título do seu mais recente álbum. O sexto disco do músico levou ainda mais longe a arte de composição do veterano Francisco Silva, ao incluir arranjos de cordas e teclados da autoria do pianista Filipe Melo. Havia nesta noite um desafio a superar: transpor a arquitetura sonora orquestral de “A rose…” para o palco, sem o comparsa Filipe Melo. “A transição destes temas para esse contexto vai exigir naturalmente uma “releitura” e uma adaptação ao formato da banda e ao contexto dos concertos” dizia o músico em entrevista recente ao Deus Me Livro. Desafio superado sem dificuldade: Francisco Silva fez-se acompanhar de uma banda: Sérgio Freitas nos teclados, Miguel Ramos no baixo, Miguel Gomes na guitarra eléctrica e Pedro Oliveira na bateria. As canções de Old Jerusalem, aqui dotadas de uma bateria “jazzy” e teclados vigorosos, não perderam nenhuma da sua vitalidade, antes pelo contrário.
A música de Old Jerusalem é, hoje em dia, uma confluência de matizes e tonalidades folk de astuta construção. A força das composições projecta-se ao vivo com naturalidade e, sem afectação, há uma evidente boa onda entre os cinco músicos, que passa para a assistência.
Apresentando cada uma das músicas, Francisco Silva revela-se uma pessoa divertida e auto-irónica, com traços de humorista. Refere que quis fazer deste concerto uma mini-celebração, entre amigos, dos 15 anos de carreira de Old Jerusalem. Houve, portanto, tempo para revisitar algumas músicas mais antigas, como “The gene genie”, do álbum “Two Birds Blessing”, de 2009, interpretada com paixão e muito bem recebida pelo público.
“One for Dusty Light”, música escolhida para apresentar o mais recente álbum, foi um dos momentos altos da noite, canção enérgica e com grande andamento rítmico. Também “A charm” teve direito uma interpretação poderosa: a ausência dos arranjos de cordas foi colmatada com sucesso pelo maior protagonismo das teclas e da bateria.
A meio do concerto, Francisco Silva anuncia a decisão de dar um pouco de diversidade ao espetáculo: “Como somos um bocado chatos, decidimos que agora toco eu sozinho. Genial”, diz com ironia, atirando-se de seguida a uma versão dos Sebadoh, “Too pure”, seguida de “Twice the humbling sun”, de 2005, duas músicas delicadas que vão de par com a sua costela de singer-songwriter solitário.
A banda sobe novamente ao palco (“é a nossa noção de espectáculo”, diz Francisco com piada) para tocar “Arduinna and the science boy”, de 2009, e “Stroll”, do velhinho “April”, de 2003, esta última levada a um devaneio noise em crescendo, com uma piscadela de olho ao krautrock de bandas como os Motorik ou os Can.
O concerto termina com “Love and cows”, de “The Temple Bell”, de 2007. Novamente Francisco Silva sozinho à boca do palco, a fechar a celebração com a sua voz grave, um eco oblíquo de várias vozes míticas da folk americana. Deveria haver, era mesmo necessário que houvesse, uma multidão a conhecer este músico excepcional.
Fotos de Rafalela Calvete.
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Próximos concertos na ZDB (sempre às 22h00):
8 Abril: Calhau! – Lançamento de “Ú” + Primeira Dama
9 Abril: Kirk Knight
14 Abril: Jaco Gardner c/ Helena Espvall – Lisbon Psych Fest 2016
21 Abril: Capicua – Concerto do Lado Esquerdo
27 Abril: Medeiros/Lucas – Lançamento “Terra do Corpo”
28 Abril: Hey Colossus + Kilimanjaro
5 Maio: Glenn Jones | Pedro Gomes
19 Maio: Geneva Jacuzzi + Jejuno
26 Maio: Tomorrow Tulips + Mighty Sands
29 Maio: White Fence
31 Maio: Steve Gunn Band
16 Junho: DAWN (Dawn Richard)
19 Junho: Kikagaku Moyo
24 Junho: Minta & The Brook Trout
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