Em mais um verão cheio de festivais, novos e velhos – num gesto exponencialmente inverso ao dos clubes com música ao vivo, que vão rareando cada vez mais, encurtando o circuito nacional para as bandas rodarem e tocarem -, o Luna Fest revelou-se como um dos mais interessantes do do ano. Apesar de ser a sua primeira edição, o novo festival coimbrão afirmou-se logo, de forma fácil, no top 3 dos festivais de verão de 2023 com o melhor cartaz. Isto no caso de alguém fazer semelhante lista, claro.
Houve várias vitórias no Luna Fest, começando logo pelo cartaz. Apesar dos cancelamentos dos Devo e, mais tarde, dos Damned, dois dos nomes mais fortes do alinhamento, o Luna Fest apresentou 28 bandas e meia (esta metade é para os Pop Kids, de Victor Torpedo, que tocaram 4 temas numa espécie de abertura para os Parkinsons) distribuídas por 5 dias, dedicados em força ao rock’n’roll mas com um fraquinho pela electrónica mais marada, e com foco em vários nomes que marcaram a história dos vários subgéneros do rock. Alguns com muitos anos disto, outros com apenas vários anos de experiência.
A outra grande conquista desta primeira edição do festival foi a atmosfera que se viveu durante 5 dias em Coimbra. Aproveitando as óptimas condições do Parque da Canção, à beira do Mondego, o Luna Fest assumiu-se como um verdadeiro evento para toda a família, com um ambiente familiar e bem relaxado. Isso não aconteceu por acaso, uma vez que a organização – a cargo de dois locais bem conhecidos, Victor Torpedo (esse mesmo, o dos Parkinsons, que já mencionámos acima) e Tito Santana (empresário com ligações ao rock na cidade) – privilegiou a componente social do festival, trocando bilhetes por quem doasse sangue, oferecendo entradas às associações e IPSS da cidade e, claro, sem ignorarmos a presença em palco dos 5ª Punkada, esse projecto que continua a provar pela enésima vez que o verdadeiro punk é uma atitude e não uma progressão de dois ou três acordes na guitarra eléctrica.
Na abertura do festival, a organização lembrava, como que a pedir desculpa e alguma compreensão em antecipação por algo que pudesse vir a correr menos bem, que este era “o primeiro dia da primeira edição do Luna Fest”. E a verdade é que este decorreu de forma irrepreensível, sem falhas a apontar e com todos os horários cumpridos com pontualidade suíça. E, porque é dos concertos que são feitos os festivais, eis aqueles que foram os destaques de cinco dias de rock’n’roll à séria, algo que já não víamos em Portugal desde os tempos do Barreiro Rocks (saudades).
Não há qualquer tipo de ordem nestes quantos destaques às bandas que se apresentaram no Luna Fest, mas é impossível começar sem ser por John Cale. Afinal de contas, o galês era o nome maior de um cartaz com muitos nomes importantes. Uma posição conquistada do topo dos seus 81 anos, claro, mas também pelo facto de ser um dos pais do rock mais independente e alternativo. Já para não falar de toda a carreira a solo.
É certo que esta não foi a estreia de Cale em Portugal, e também há que ser honesto: nem sempre as suas actuações ao vivo são do mais interessante. Contudo, John Cale apresentou-se em Coimbra em forma e bem-disposto. Tão bem-disposto que até tocou o “I’m waiting for the man”. Alguém dizia, antes do concerto começar, que numa das passagens de John Cale por Portugal tentou que ele lhe assinasse os discos dos Velvet Underground, algo que o galês recusou diplomaticamente. Aqui, o tema dos Velvet serviu mesmo para lançar o concerto para uma fase final com o “Barracuda”, o “Villa Albani” e o “Pablo Picasso”, estendidos por divagações psicadélicas, com a sua banda a curtir em grande. Se alguém só foi ao primeiro dia do Luna Fest, ficou logo com o festival ganho.
Temos visto os Black Lips crescerem à nossa frente e, por isso, não conseguimos deixar de nos sentir um pouco como uns pais orgulhosos. A primeira vez que tocaram em Portugal, em 2005, eram apenas uns jovens promissores que tinham acabado de assinar pela In The Red, à boleia daquele fuzz-doowop-psicadélico de “We Did Not Know the Forest Spirit Made the Flowers Grow”. Depois cresceram, o sucesso consolidou-se e fomo-los vendo mais vezes pelos palcos nacionais, à medida que foram lançando mais discos. E, apesar de alguns títulos mais… aborrecidos, o último “Apocalipse Love” é um belo álbum. Se bem que “Good Bad Not Evil” continua a ser o melhor dos originais. Em Coimbra deram um concerto bem sólido, cheio de canções e já sem as loucuras do início, com um alinhamento que se focou no último trabalho, mas que foi atrás também. E, claro, terminou com a dupla “O Katrina” e “Bad Kids”, temas orelhudos e vencedores em qualquer palco por este mundo fora.
A dupla espanhola La Élite foi uma das surpresas do Luna Fest. Primeiro, porque não devem ter recebido a informação sobre o dresscode apropriado, já que subiram a palco de roupa desportiva e casual; depois, porque trouxeram com eles uma música de quem parecia ter estado a passar som numa qualquer tenda de cachorros numa festarola da terra. E se calhar até devem ter estado, porque a sua música é uma mistura de refrões punk, riffs orelhudos, samples de 8 bits, batida manhosa, festa brega, mas nem por isso um menor espírito combativo.
Os La Élite serão o filho ilegítimo dos Sleaford Mods com o… Pedro Máfama? E, apesar dos recursos mínimos – um microfone e umas máquinas onde Nil Roig lança os samples para David Burguês gritar por cima -, inauguraram o crowdsurfing do festival. Lembram-se de, lá em cima, termos dito que o Luna Fest tinha um fraquinho pela electrónica mais marada? Era a concertos como este que nos referíamos.
Os londrinos Oh! Gunquit foram outra boa surpresa do Luna Fest. Com um punk dançável cheio de bizarraria, sopros e uma vocalista possuída pelo demónio, tiveram a difícil tarefa de tocar ainda de dia, com o público ainda a aquecer, mas transformaram o palco numa pista de dança e estenderam-no até ao público – com a vocalista Tina Swasey a descer até ás primeiras filas regularmente.
O saxofone e o ocasional trompete dão-lhe um balanço que faz lembrar os Cato Salsa Experience, a atitude da vocalista remete inevitavelmente para X-Ray Spec e há exótica, surf music e toda uma viagem pelas margens mais freak do rock, que tornam tudo em entretenimento rock’n’roll. “Dance like fuck”, um dos temas que fica no ouvido durante alguns dias após o final do festival, não só é representativo do som da banda, como é o slogan perfeito para o concerto dos Oh! Gunquit.
Bandas como os Undertones ou os Buzzcocks, ainda que, por motivos diferentes, revelaram-se um pouco cansadas ou datadas. Os Fleshtones, malta que conviveu no CBGB com o início do punk (e fazem questão de o sublinhar, até porque há um tema-chave chamado “Remember the Ramones”), pareciam inicialmente que iriam pelo mesmo caminho. Mas a verdade é que, com uma actuação mais suada e trabalhada, com coreografias que envolvem o público (la ruleta del talento, em que punham toda a gente a rodopiar sobre si próprio), os Fleshtones começaram a levar a sua avante e terminaram em altas, com um concertaço que coloca o ênfase mais no roll do que no rock.
Os Fleshtones, que na passagem de século ganharam uma nova vida e popularidade com o lançamento de “Do You Swing”, tiveram ainda o bom gosto de homenagear Charlie Watts com uma versão de “Child of the Moon”. No final, saltaram as baias, juntaram-se à festa no moshpit com o público e despediram-se com uma das melhores actuações do Luna Fest.
Fotos: Nuno Ávila
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