Tem nome de jogador de basquetebol mas, o seu destino, joga-se bem longe da área dos nove metros ou dos lançamentos triplos. Kendrick, que escolheu Lamar e não Duckworth como apelido artístico, lançou neste ano de 2015 aquela que é sem dúvida a sua melhor rodela e, por que não dizê-lo, um dos discos que ficará impresso a letras douradas na enciclopédia dedicada a compilar os melhores momentos do Hip Hop, ao lado de pérolas como “It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back”, dos Public Enemy, “Straight Outta Compton, dos N.W.A., “The Low End Theory”, dos A Tribe Called Quest, “Paid in Full”, de Eric B & Rakim, ou “3 Feet High & Rising”, dos De La Soul.
Antes do lançamento de “To Pimp a Butterfly” (Top Dawg Entertainment e Aftermath Entertainment), muito se falou de – e, sobretudo, se criticou – Kendrick Lamar, desde chamar-lhe vendido a acusá-lo de apontar demasiado o dedo à comunidade negra americana, acusando-a de muitas das maleitas de que ainda padece. O consenso, diga-se generalizado, era de que o rapper estaria imerso num conflito interior de proporções épicas. Afinal, como poderiam coexistir três canções tão diferentes como “i”, “The Blacker the Berry” e “King Kunta” num mesmo longa-duração? Pois bem, a resposta foi dada de luva branca.
“To Pimp a Butterfly” é um disco maníaco, desconcertante, ambicioso, inquieto, que mistura géneros e influências musicais sem medo de cortar o fio errado e rebentar com o edifício onde habita a imaginação de Lamar. Há laivos de funk, toneladas de jazz, borrifos de R&B, uma dose muito generosa de soul, um desejo manifesto de experimentação e, sobretudo, um regresso a muitas das boas raízes do Hip Hop.
O disco habita – sobretudo liricamente – nas margens da ambiguidade, onde ao mesmo tempo se é vítima e perpetrador, num mundo onde o cinzento é a cor dominante e os grandes temas são a hipocrisia, a culpa, a decadência e a inércia colectiva. Encontrarão neste disco muito mais temas da contemporaneidade americana do que em muitos dos grandes romances americanos da era moderna: fala-se das relações entre raças, das fundações do país assentes na escravatura, das grandes desigualdades ditadas pelo dinheiro ou pela cor de pele, da relação desigual entre sexos, do lado negro da fama.
Não esperem, porém, qualquer revelação ou epifania. Kendrick Lamar prefere levantar questões a oferecer respostas mas, entre o caos, a desordem e uma aula intensa de psicoterapia (falhada), escondese um disco com muito(s) significado(s), que trata de homenagear algumas das figuras com que Lamar cresceu, tais como Michael Jackson, Nelson Mandela ou Tupac Shakur.
“To Pimp a Butterfly” termina, aliás, com uma falsa entrevista de Kendrick a Tupac – recorrendo ao áudio de antigas entrevistas realizadas a Tupac – onde, para lá do prenúncio de uma revolução pintada de negro, se desvenda o que se esconde no críptico título escolhido por Lamar para este seu terceiro disco. Uma entrevista onde, a certa altura, Tupac diz qualquer coisa como isto: “We ain’t really rapping, we just letting our dead homies tell stories for us.”
É certo que Kanye West e Drake podem estar a poucos metros de atingir o cume do Everest do Rap vestindo, como diriam alguns, um imenso manto protector. Porém, quando lá chegarem, encontrarão Kendrick Lamar entretido com a sua colecção de borboletas vivas. Escrevam isto: este não é um álbum de rap. É o álbum rap.
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