Foi com “The Epic”, o monumental triplo álbum lançado em 2016, que o jovem saxofonista Kamasi Washington se transformou em algo que o jazz actual raramente produz: uma estrela. O disco revelava confiança e ambição desmedidas, tendo contado com uma orquestra de 32 músicos, uma banda de jazz de 10 elementos e ainda um coro de 20 cantores – um fartote jazzístico.
E, contra todas as expectativas, a coisa funcionava. Para mais, graças também às suas ligações a artistas em alta como Kendrick Lamar e Flying Lotus, Washington conseguiu atrair para o jazz uma horda de jovens amantes de música.
Este ano, Kamasi volta à carga com mais um registo de grande fôlego: “Heaven and Earth” (2018, Young Turks Recordings), um ecléctico álbum duplo que balança entre o classicismo e a vanguarda do jazz. A primeira parte do disco, “Earth”, pretende representar as preocupações mais terrenas, mais militantes e políticas. Já a segunda, “Heaven”, explora o lado mais utópico e espiritual do saxofonista.
A maioria dos temas estende-se para lá da marca dos oito minutos – algo que não é raro no jazz – mas, ao longo desta viagem de 2 horas e 24 minutos, Washington não se limita a debitar solos atrás de solos: a sonoridade passa por muitos e variados terrenos, criando uma paisagem musical vibrante e dinâmica: temos o funk gingão de “Street Fighter Mas”, marcado pelo assertivo contrabaixo de Miles Mosley; o groove cheio de pinta de “The Psalmnist”, com uma percussão do outro mundo por parte da dupla de bateristas Tony Austin e Ronald Bruner; o aceno de cabeça a Bruce Lee, no quase kitsch “Fists of Fury”, que abre o disco banhado em ritmos latinos; ou as derivas transcendentais de temas como “Can You Hear Him” e “Space Traveler’s Lullaby”, onde se sente mais a influência do jazz cósmico de Pharoah Sanders, muito em voga nos anos 60 e 70.
Há ainda guitarras e vozes distorcidas com efeitos, sintetizadores vintage, arrebatadoras secções orquestrais e coros de proporções bíblicas – Washington cria desta forma um som denso e dramático, que evolui muitas vezes em crescendo até à intensidade máxima.
Noutros pontos a receita é mais vaporosa – veja-se o tranquilo “Testify”, onde brilha a voz intemporal da vocalista Patrice Quinn, num registo muito elegante. Ou o pulsante “The Invincible Youth” que, depois de um cacofónico início, desagua num palco ideal para o baixo fluído de Thundercat voar a grande altitude. “Will You Sing”, a faixa que encerra o disco, contempla coros celestiais e operáticos, a abrir caminho a um magnífico solo do trombonista Ryan Porter.
Há, neste festim musical, muitos petiscos e muitos motivos de interesse, sublinhados por uma enorme atenção ao pormenor e um cuidado especial nos arranjos e na produção. “Heaven and Earth” é, sem dúvida, um disco que merece algum tempo de exploração para se revelar na totalidade – e vale a pena perdermo-nos no vasto e exuberante mundo sonoro de Kamasi Washington.
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