Jack White é um dos músicos mais irrequietos e formigantes do nosso tempo. A sua ascensão começou no final do século passado, com o aparecimento dos The White Stripes, duo icónico que Jack formou com a ex-mulher Meg White. O corpo musical da banda era formado por vários pedaços: a intensidade do garage-rock, os blues clássicos do Mississipi, umas pitadas de country e folk e uma atitude punk sem limites.
A presença discreta e a percussão minimalista de Meg eram o contraponto perfeito para a energia incisiva e rápida das guitarras de Jack. A parceria resultou em seis álbuns, onde se inclui “Elephant”, de 2003, que trazia o mega-êxito planetário cantado hoje em estádios de todo o mundo, “Seven Nation Army”.
Após o final dos White Stripes, em Fevereiro de 2011, e com mais dois projectos de sucesso no currículo — os The Dead Weather e os The Raconteurs — , Jack White meteu mãos à obra para construir a carreira a solo. O primeiro disco, “Blunderbuss”, saiu em 2012, e foi de imediato aclamado por crítica e público, com singles como “Love Interruption” e “Sixteen Saltines” a assaltarem os tímpanos de milhões de ouvintes. Seguiu-se “Lazaretto”, em 2014, e “Boarding House Reach”, em 2018.
Hoje em dia, White é uma instituição do rock, e assume vários papéis: é dono de uma editora, a Third Man Records, é um experiente produtor (produziu mais de 30 discos, desde os Von Bondies até Beyoncé) e tem um papel activo na onda de revivalismo do vinil, sendo dono de uma fábrica de discos em Detroit.
Como músico, o seu registo oscila entre dois extremos: o Jack experimentalista, a rasgar pano com a guitarra no volume máximo, e o mais suave, convencional e acústico, refletido na compilação de 2016, “Acoustic Recordings 1998-2016”. Este ano o músico resolveu, pela primeira vez, desdobrar essas facetas em dois discos diferentes.
No primeiro, “Fear of The Dawn” (Third Man Records, 2022), Jack deu largas ao seu lado mais feroz e deliciosamente imediato. O disco (respiremos fundo) arranca a toda a brida com “Taking Me Back”, que começa com um riff poderoso e uma batida seca, cheia de groove. As duas músicas seguintes não dão tréguas: o tema-título, “Fear of The Dawn”, quase metaleiro, é um festim de guitarras infecciosas, e “White Raven” desfila todos os truques de produção sem tirar o pé do acelerador.
O disco faz inúmeras curvas apertadas, e nunca sabemos bem o que vai surgir a seguir. Pode ser um pedaço de uma ária operática (“Hi-De-Ho”) ou um trecho de rap cantado por Q-tip, dos A Tribe Called Quest — tudo na mesma música.
Os temas são atravessados por descargas elétricas de alta tensão (como no vibrante “What’s The Trick”), e são escassos os momentos de acalmia. Só em “Morning, Noon and Night” o ritmo abranda, fazendo lembrar o registo dos The Raconteurs.
“Entering Heaven Alive” (Third Man Records, 2022), segundo disco deste ano, reduz a voltagem até um registo mais acústico e convencional, como se White quisesse convidar o ouvinte a plantar firmemente as botas no pó de uma vasta pradaria americana. Os dois álbuns não podiam ser mais diferentes: o primeiro é afiado, futurista e brilhante, cheio de superfícies metálicas, enquanto o segundo apresenta tons mais orgânicos, de madeira e terra. No entanto, em ambos é visível a assinatura e o carisma particular do músico.
Este segundo conjunto de canções continua enraizado na tradição blues e folk tão cara a White. Curiosamente, a guitarra surge a par com o piano no coração das canções. Aposta-se amiúde nos teclados e percussões jazzísticas. O amor, essa eterna musa, é assunto constante, porém, a palavra-chave aqui é tranquilidade.
A feitiçaria digital de estúdio passa para segundo plano, mas “Entering Heaven Alive” é tão consistente no seu universo como “Fear of The Dawn”, embora não seja tão lúdico.
À sua maneira também há aqui experimentação: veja-se a orelhuda “All Along The Way”, que começa como uma fina balada dedilhada, para depois se transformar numa espécie de reggae, com toques de órgão.
O disco está cheio destes pequenos momentos: o registo hipnótico de “I’ve Got You Surrounded (With My Love)”, que se vai chegando passo a passo ao jazz; o lento avolumar do genial “If I Die Tomorrow”, até incorporar um fraseado de guitarra penetrante; o minimalismo de “Love is Selfish”, que faz lembrar a era de ouro dos White Stripes; o anacronismo delicioso de “Queen of The Bees”. A destacar ainda “Mad Man from Manhattan”, de novo próxima do jazz na percussão e no piano, com uma linha de baixo carismática e envolvente.
Terminamos a audição com uma versão tranquila de “Taking Me Back”, de “Fear of The Dawn”, fechando o círculo com chave de ouro.
Conclusão: White faz um figurão como um dos mais inventivos músicos da actualidade, e destoa do panorama adormecido que o género rock atravessa por estes dias, com bandas soporíferas (olá, My Chemical Romance) ou mortas-vivas (como os actuais Strokes). Enquanto John Anthony White III for vivo, o rock n’roll não morrerá.
Sem Comentários