Depois de termos passado umas semanas a tentar convencer-vos a irem ao InMusic, que este ano assinalou a sua 13ª edição na capital croata de Zagreb, chegou a hora de vos contarmos como foi. Afinal de contas, seria um pouco parvo se não o fizéssemos, até porque este festival merece todo o nosso carinho. É que, de entre todos os festivais que olhámos este verão, este foi aquele que nos pareceu ter o cartaz mais equilibrado, interessante e apelativo.
Antes de mais, comecemos por falar da Croácia – e de Zagreb em particular. Diz-me o bom senso que não devo gastar mais do que um parágrafo a fazê-lo. E o Pedro Miguel Silva, o editor, pede-me sempre para mantê-los curtos, de forma a garantir a atenção do leitor. Por isso, como este parágrafo já vai longo, digo-vos apenas isto: Zagreb é fixe! Visitem-na! E esqueçam Dubrovnik, não há paciência para tanto turista. Afinal de contas, também não recomendam o Algarve aos vossos amigos estrangeiros, não é?
O InMusic decorre no lago Jerun, a poucos minutos do centro de Zagreb, o que faz dele um festival com uma localização privilegiada. Como se isso não fosse suficiente, a organização disponibiliza ainda autocarros gratuitos, que ligam a cidade ao recinto de forma regular. Um recinto bastante confortável com 4 palcos – o palco principal; o palco secundário, chamado Palco Mundo, numa descrição extremamente precisa uma vez que não passa por lá nenhuma banda de Marte; um mais escondido, onde veremos o jogo da Croácia com a Islândia; e um exclusivamente balcânico -, várias tendas (incluindo uma de karaoke!), zona de restauração, vários bares de cerveja artesanal (lá, como por cá, a febre da cerveja artesanal…), um jardim de pedras, uma réplica iluminada da torre Tesla (o sítio perfeito para as selfies, na sempre eterna guerra entre croatas e sérvios pela reivindicação da nacionalidade de Nikola Tesla) e nenhuma presença de grandes marcas a tentarem impingir-nos o que quer que seja, como acontece em muitos dos festivais a que vamos e que mais parecem uma feira popular do que um certame musical.
David Byrne
Depois de Frank Carter & The Rattlesnakes terem tido um acidente de viação algures na Eslovénia e cancelado a sua actuação no InMusic, David Byrne foi o primeiro concerto que vimos no festival. O que não poderia ter sido mais apropriado, uma vez que teria sido difícil começar melhor.
David Byrne é um tipo que tem um entendimento de um concerto como sendo um espectáculo global, para lá da parte musical. A sua actuação é, por isso, um regalo para os olhos, um espectáculo total, que não se fica pela música e se estende à performance, à dança e até à instalação. O que, à partida, até nem é fácil adivinhar, uma vez que o palco apenas apresenta umas fitas – tipo aquelas que encontramos nas portas dos talhos – que delimitam o espaço numa espécie de black box. Perdão, uma white box, uma vez que as fitas são prateadas. Também não existem instrumentos em palco e os músicos, que irão entrar e sair consoante os temas, transportam consigo os próprios instrumentos, incluindo a bateria.
Não existe um único segundo do espectáculo que não seja ensaiado. Todos os músicos são performers que, juntamente com Byrne, entram em coreografias que acompanham as músicas, sabendo sempre onde se posicionar e o que fazer. Os músicos vão entrando e saindo do palco, chegando a ser doze pessoas simultaneamente na white box. E, com elas, vão trazendo vários instrumentos, uns mais convencionais e outros menos ortodoxos – é bem possível que seja a única banda em digressão internacional a tocar berimbaus. E o seu concerto é um caldeirão (centrifugadora?) para onde confluem todos os ritmos dançáveis do mundo: do funk de James Brown ao highlife nigeriano, do calipso do Caribe ao samba brasileiro.
Apesar do concerto ter como mote o mais recente disco (e que disco!), “American Utopia”, Byrne revisita toda a sua carreira, incluindo os Talking Heads (estão lá os clássicos “Once in a Lifetime” ou “Burning Down the House”, por exemplo), a colaboração com St. Vincent (“I Should Watch TV”, num tema em que a banda se precipita em direcção a uma luz de um ecrã, como no Poltergeist) ou com Fatboy Slim (“Toe Jam”). O concerto termina com uma versão de “Hell You Talmbout”, de Janelle Monáe, com David Byrne a assumir a sua faceta activista e a alertar-nos para a pertinência deste tema, 3 anos depois de ter sido gravado. E diz-nos para irmos ver à Internet quem são as pessoas de que fala a letra, caso não saibamos. Nós poupamos-vos tempo: são todos afro-americanos que morreram às mãos da polícia norte-americana ou em crimes de ódio. #BlackLivesMatter!
The Kills
Remember when The Kills were a great band?
Pepperidge Farm remembers.
Apetece fazer um meme assim, depois de vermos os The Kills (e nós fizemo-lo, só que a maioria de vocês não são meus amigos no facebook para o verem). Longe vão os tempos em que, com “Keep on Your Mean Side” e especialmente “No Wow”, eram uma banda que entusiasmava.
Os Kills faziam da intimidade um dos seus grandes trunfos, até para contornar as limitações da economia de meios. Afinal, eram apenas dois em palco mais uma caixa de ritmos. Acontecia o mesmo com os White Stripes, outra dupla do rock’n’roll que o grande público descobria mais ao menos na mesma altura. No entanto, enquanto a intimidade entre Jack e Meg White era um amor familiar, entre dois manos, a intimidade entre Jamie Hotel Vince e Alison VV Mosshart era mais carnal. Aquilo que nos primeiros era fazer amor, nos segundos era foder. E à bruta.
Agora têm companhia em palco (uma bateria que dá uma maior orgânica à música, mais teclas e sintetizadores) e, com isso, perderam intimidade e, consequentemente, vitalidade. Basta ver o que fizeram com “List of Demands”, tema acabado de lançar, onde domesticam por completo o tema de Saul Williams, uma canção altamente perigosa e cheia de arestas cortantes. Ao passar pelo filtro dos Kills, tornou-se dócil, polida e inofensiva, tal como o seu concerto no InMusic. Apesar de ser sempre bom ouvir temas antigos como “Fried my Little Brains” ou “Kissy Kissy”, rapidamente damos por nós a bocejar e a olhar para o relógio a ver quanto tempo falta para os Queens of The Stone Age.
Queens of The Stone Age
Billy Childish, essa lenda do rock’n’roll e do garage em particular, certa vez disse ao Guardian que sente sempre que o “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” é uma fraude da história da música. Aliás, para ele o disco até representa uma certa morte do rock’n’roll, uma vez que este deve ser cheio de energia – como alguém a afogar-se que está a estrebuchar para sobreviver, e não soar como algo que parece que demorou 6 meses a ser feito. Não concordo muito com essa opinião em relação ao Sgt. Pepper’s, mas faz tanto sentido em relação aos Queens of the Stone Age que parece ter sido pensada para eles.
Mas nem sempre foi assim, foi mais ou menos depois de sair o Nick Oliveri. Pode até ter sido coincidência, mas o que é certo é que, depois de “Songs for the Deaf”, as coisas nunca mais foram as mesmas. Mas não sei dizer-vos porquê. É claro que Josh Hommes sabe à distância toda a missa do rock: as músicas estão lá, todos os signos do género também e, contudo, ouvimos os Queens of the Stone Age e… meh.
Ao vivo a coisa não muda muito. Os temas são giros, todo o folclore rock’n’roll também, mas há sempre demasiadas octanas na música, que nos causam uma espécie de paralisia por enfartamento. Mas… que todos os problemas da música fossem os Queens of The Stone Age e estaria tudo bem.
Bombino
Começamos o segundo dia de InMusic ainda o sol vai alto, com os sons quentes de Bombino, que aterra em Zagreb a bordo do programa Multiculturalism in Music. Bombino auto-intitula-se o Melhor Guitarrista do Mundo, marca registada e tudo, o que é uma manobra de marketing brutal, e a sua guitarra vai bastante vezes ao encontro da de Jimi Hendrix, da de Mark Knopfler e da de Santana (e isto é um elogio). No entanto, a sua música é feita dos mantras circulares do blues do deserto que, nos últimos anos, tem ganho cada vez mais projecção no ocidente graças a Ali Farka Touré, os Tinariwen ou os Songhoy Blues.
Num palco cheio com as coisas da St. Vincent – e com um som lá não muito famoso -, Bombino está limitado à boca de cena para se mexer, mas nem por isso se deixa abater. É certo que não é propriamente o festival mais indicado para a sua música (viram-no no Festival Músicas do Mundo, em 2012, num concertão no Castelo?), mas, sempre que a coisa está mais preta, o baixista Youba Dia lança a cartada do futebol e tece loas à selecção croata, desejando a sua vitória no Mundial. A partir daí o público está ganho e não há como correr mal. Poderia era ter sido só um bocadinho mais curto…
St. Vincent
St. Vincent é uma espécie de David Byrne no feminino, na forma como encara o espectáculo como uma manifestação artística total, não sendo de estranhar que ambos tenham colaborado há algum tempo atrás. No entanto, enquanto Byrne é mais orgânico, St. Vincent é mais maquinal. Por exemplo, enquanto os músicos e os dançarinos do primeiro dançam pelo palco fora, os da segunda comportam-se como autómatos – ou como se fossem os Kraftwerk.
Num espectáculo igualmente coreografado – do qual faz parte, inclusive, um roadie de máscara e cabeleira à tigela branca, que me fez pesadelos durante os dias seguintes -, St. Vincent lidera as hostes de forma imparável, cantando e tocando guitarra. Não é por acaso que haja muito boa gente que a considere a única guitar hero da actualidade. Quando sola lembramo-nos de Prince, e as comparações não se ficam por aí. St. Vincent tem mais rock’n’roll numa corda da guitarra que os Queens of the Stone Age em todo o concerto (em casos de dúvida ver o texto acima sobre a banda de Josh Hommes).
Jinx
Os Jinx são tipo os Xutos & Pontapés da Croácia. Banda veterana, com carreira que remonta ao início dos anos 90, atraem uma multidão ao Palco Mundo, que canta todos os seus temas em uníssono. A sua música é uma mistura de jazz e soul, de cores quentes que associamos mais a outras latitudes do que à Croácia. Oiçam isto:
Facilmente digestivos, easy-listening e uma vocalista com um vozeirão fazem dos Jinx a melhor banda da casa que vimos. O problema chega depois, quando insistem em inserir uma electrónica mais manhosa que, ao que consta, passou a ser a imagem de marca do grupo quando regressou em 2007, após se ter separado no início deste século.
Nick Cave & The Bad Seeds
Como descrever aquilo que não pode ser descrito por palavras? Conseguiria fazê-lo facilmente através de uma dança interpretativa mas, como vocês não iriam poder ver, irei tentar por palavras. Ora bem, tal como fez recentemente em Portugal, no Primavera Sound, Nick Cave chegou e arrasou por completo.
Particularmente bem-disposto – o que o fez enganar-se nas letras várias vezes, nada de mais -, Cave foi um frontman total, um mestre-de-cerimónias que tanto liderou os seus Bad Seeds como interagiu com o público, debruçando-se sobre as primeiras filas – e pedindo várias vezes para que lhe escutassem o bater do coração em gesto hiper-dramático, que faz parte da sua performance enquanto crooner amaldiçoado -, ou atirando-se ao piano para uma ou outra balada (“Into my Arms”, cantado em uníssono com o público, foi um momento particularmente bonito) ou um momento mais aleatório de ruído gratuito.
Atrás de si os Bad Seeds carburavam de forma perfeita, às mãos do mestre Warren Ellis, explodindo em catarse sónica perfeita (a sequência “Do You Love Me” + “From Her to Eternity”, logo de início, foi um ataque sonoro brutal, enquanto que “Tupelo” fustigou o público da mesma forma que o tornado com o mesmo nome devastou o sudeste norte-americano em 1936) ou tecendo o cenário perfeito para os devaneios de Cave, pregador desvairado sempre a um passo de se sacrificar pelo seu público.
Para “Weeping Song”, Nick Cave atira-se para a audiência e sobe a uma das plataformas onde estão a filmar o concerto (haveria de regressar ao mesmo sítio para “Push the Sky Away”, já perto do final), como se estivesse ainda nos Birthday Party. Logo a seguir puxa para palco uma das miúdas da primeira fila para “Stagger Lee”. É um achado, que dança e canta com ele, improvisando versos e dançando à parva. A partir daí vale tudo. Mais pessoal sobe ao palco, numa invasão controlada, e termina tudo de forma muito bonita, primeiro com o “Push the Sky Away” e logo a seguir com “Rings of Saturn”. Quem viu “One More Time With Feeling”, o documentário sobre o mais recente disco da banda – onde víamos Nick Cave quase a desmoronar-se após a morte do filho -, nunca adivinharia que esta digressão iria ser assim, tão libertadora e catártica.
Portugal. The Man
Primeiro veio o nome. Chegaram-nos como uma curiosidade exótica, uns norte-americanos quaisquer que se chamavam a si próprios Portugal. The Man. Mesmo que dissessem em entrevista que a escolha do nome tinha sido o mais aleatória possível, sem ter nada a ver connosco, portugueses, era impossível não sentir automaticamente uma certa empatia.
Só depois chegou a sua música. À medida que começavam a despertar mais e mais atenção no panorama internacional, também nós começámos a perceber que havia algo mais no rock psicadélico dos Portugal. The Man. E começámos a prestar-lhes mais atenção – ou, pelo menos, aquela que realmente mereciam.
O concerto no InMusic é como a sua música: um caleidoscópio de sons e imagens, que se perdem em jams intermináveis, enquanto uma mensagem provocadora pisca no ecrã por trás: real bands don’t need singers. Depois surgem as animações em 3D, completamente datadas, que fazem lembrar o Oogachaka Baby. O quê?, não sabem o que é o Oogachaka Baby? O que estão à espera para irem ver no youtube?
Interpol
Breaking news: os Interpol ainda existem!
É verdade, também me custou a acreditar, mas que um raio me fulmine já aqui se vos estou a mentir. E digo-vos mais: não só os Interpol ainda existem como ainda são cabeças-de-cartaz em festivais internacionais.
Sensivelmente a meio do concerto, um telefone toca subitamente. Era 2003, a pedir o revival pós-punk de volta. Os Interpol não lhe ligam nenhuma e mantêm-se concentrados e impassíveis até ao final. Entretanto, começa a chover, pela primeira vez nos três dias do festival. Agora pensem.
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