A alegria como um acto de resistência. Esta frase, que poderia bem ser estampada numa T-Shirt ou servir de alimento a um daqueles azulejos de cozinha, é o assumido lema de vida e o título da segunda rodela dos britânicos Idles, banda que, na passada terça-feira (27 Novembro), nos brindou com um concerto memorável no Lisboa ao Vivo. Um daqueles para contar a amigos – ou gozar com os que não foram -, falar com orgulho à descendência e relembrar daqui a uns anos valentes, isto quando o punk não passar já de uma miragem sonora.
Num cenário muito bem desenhado, com um fundo floral de onde pareciam cair pétalas graças ao incrível jogo de luzes e ao lado teatral dos Idles, Joe Talbot – que até vestiu a T-Shirt do musical Cats – e companhia mostraram a razão de, vai não vai, se (ouvir) dizer que a música pode salvar vidas. Não se poderá propriamente dizer que alguém tenha sido salvo pela manobra de Heimlich, in extremis de um AVC ou de emborcar uma droga marada que iria fritar metade da carga neurológica, mas em boa verdade os putos ficaram mais putos e os quarentões, cinquentões e outros escalões de IRS acima voltaram, provavelmente, a sentir-se como se tivessem vintes, agradecendo os ouvidos meio tapados, as mais ou menos discretas nódoas negras e aquele sorriso parvo que teimava em não desaparecer no dia seguinte.
Durante cerca de hora e meia, o punk dos Idles que é muito mais do que isso – há nele demasiado groove ou riffs que os Nirvana gostariam de se ter lembrado – fez, pela luta de classes disparada corpo a corpo, mais do que qualquer propaganda esquerdista, com uma palavra de conforto aos migrantes – “Long live Danny Denelko!” -, o assumir da veia feminista, o elogio do New Housing Service como a melhor coisa de que a Inglaterra se lembrou, um manguito feito ao Brexit ou, num plano mais emocional, o apelo à partilha de sentimentos para se chegar a um melhor futuro, a necessidade apoiar o nosso irmão – genético ou de caminhadas existenciais – ou ter um ombro para aquele amigo deprimido descansar ou, como parece ter acontecido a certa altura nas filas da frente, resolver uma discussão com um abraço.
A química com o público e as filas da frente foi uma constante, com direito a crowd surfing e a desfile presencial da parte dos guitarristas, ou a um português falado sem medo por Talbot, que se derreteu com um sapo que alguém se lembrou de carregar em ombros e, ainda, deu por si a gritar em vão o nome do PM António Costa, uma partida punk que alguém de bom tino punk se lembrou de lhe pregar.
Talbot que, apesar de a certa altura ter colocado a mão atrás das costas como que num prenúncio de reumatismo precoce – e com uma voz rouca que ameaça quebrar a qualquer altura mas que, como por milagre, vai resistindo e crescendo tema atrás de tema -, ainda desempenhou o papel de maestro e de stand up comediant, agradecendo aos seguranças por terem amparado tanta gente, dizendo que a banda tem dois discos e quatro canções populares ou, num hiato mais longo, lembrando à banda que se não tocarem ele não se cala – “You know the rules!”, atirou, para contentamento do baterista que logo pôs a máquina a rolar.
Os elogios, esses, foram uma constante, com expressões como “Best fucking crowd in Europe”, “I fucking love you”, “Obrigado” ou “We will not forget you” a fazerem-se ouvir numa noite onde o acto de resistir foi feito “celebrando a vida”, na qual Talbot sacou ases como este conselho que todos deveriam levar muito a peito: “Be interested and interesting”.
Momento alto foi a invasão de palco por parte de um grupo de miúdas e mulheres, que a certa altura já disparavam acordes em ambas as guitarras e ainda ajudavam o baterista na demolição sonora, enquanto o resto da banda se divertia com o público cá em baixo. Uma celebração do feminismo e da vida que foi do melhor que já se viu em cima de um palco.
A festa terminou com “Rottweiler”, “uma canção anti-fascista” nas palavras de Talbot, que não alinhou em encores – “são estranhos” – e observou, por detrás da cortina, a loucura temporária que tomou conta do guitarrista que, depois de colocar a guitarra num loopesco feedback, se sentou na bateria acompanhando o kick de bombo com palavras sem pátria –tão mas tão plenas de sentido naquela noite.
Na próxima manifestação por Abril, pela causa LGBT – ainda tivemos um beijo nos lábios trocado por Talbot e Mark Bowen – ou por qualquer outra causa que valha a pena, tratem de acrescentar os Idles à banda-sonora. Well done mates. Well done indeed.
Fotos: Nuno Conceição/Everything Is New
Setlist
Colossus
Never Fight a Man With a Perm
Mother
Faith in the City
I’m Scum
Danny Nedelko
Divide & Conquer
1049 Gotho
Samaritans
Television
Great
Love Song
White Privilege
Gram Rock
Benzocaine
Exeter
Cry To Me (Solomon Burke cover)
Well Done
Rottweiler
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