O Musicbox continua a festejar o seu 10º aniversário da melhor forma: com concertos em catadupa. Esta quarta-feira o convidado de honra foi o americano Howe Gelb, que trouxe suas canções carregadas com o imaginário do deserto do Arizona.
As ligações do músico a Portugal são muitas – para além de ser visita frequente no nosso país, a sua influência está presente em vários aspectos da nossa música moderna, desde os Dead Combo até Samuel Úria, passando por muitos outros.
Gelb cedo aperfeiçoou o seu estilo particular, embebido na tradição musical country/mexicana do sudoeste dos Estados Unidos. Lança discos sólidos e coerentes há mais de 35 anos, seja a solo, com a sua banda de sempre – os Giant Sand -, ou com outros projectos sortidos.
Mesmo assim, o músico tem uma presença discreta no panorama mediático, talvez porque nunca se preocupou com as últimas tendências, nem foge radicalmente da sua matriz sonora a cada novo trabalho que edita. Gelb vive a sua música como base para uma espécie de comunidade de músicos, e está sempre a colaborar com alguém para gravar alguma coisa.
Especialista em manipular a atmosfera do deserto para a converter em matéria musical, tal como os seus “parentes” Calexico (que já foram em tempos a secção rítmica dos Giant Sand), Gelb não deixa de ser um artista ecléctico.
Na sua longa discografia encontramos peças instrumentais de piano para clubes de jazz fumarentos, óperas country-rock, um disco com coros gospel do princípio ao fim e uma colaboração com um grupo de ciganos da Andaluzia. Um dos méritos do músico consiste em misturar cumbias, mariachis, flamengo e rock psicadélico num cocktail perfeitamente enquadrado com a sua estética sonora.
O disco mais recente da sua carreira chama-se “Heartbreak Pass”, e foi gravado com os Giant Sand em 2015 – ao que parece será o último tomo da banda, uma vez que Howe anunciou o fim do projecto há poucos dias, após 30 anos de carreira.
Com tão elevada produtividade o alinhamento do concerto era uma incógnita, até porque o músico não gosta de promover repetitivamente os álbuns. Sabia-se apenas que o cantor actuaria a solo, neste primeiro concerto da sua digressão europeia.
A noite começou com a actuação da portuguesa Sallim, que subiu ao palco acompanhada apenas por uma guitarra eléctrica de seis cordas. A cantora tem uma presença delicada – a guitarra parece 2 números acima do seu tamanho – mas, quando canta, a voz é segura e melodiosa. Assumidamente lo-fi, deu um espectáculo contido e sem frufrus, mostrando que com um pouco mais de rodagem de concertos pode tornar-se um caso sério na música indie portuguesa.
Pouco depois, embalado por músicas de Leonard Cohen, o público fingia não reparar que Howe Gelb já estava em palco, de blusão de cabedal e boné de camionista, a verificar os cabos e a afinar a guitarra antes do seu concerto. A guitarra ficaria para mais tarde: o início deu-se com Gelb ao piano, interpretando uma poderosa versão de “A Thousand Kisses Deep”, precisamente de Leonard Cohen.
O músico tem alguns pontos de contacto com o cantor canadiano: a sua prestação vocal, as imagens poéticas e as paisagens sonoras de largos horizontes convidam à comparação com Cohen, o que não pode deixar de ser considerado um elogio. Claro que há diferenças – as viagens sónicas de Gelb levam-no, muitas vezes, para caminhos mais experimentais que os do literário Cohen.
Não é difícil colaborar com Howe Gelb na escrita de canções: o Musicbox em peso fê-lo na quarta à noite. Gelb está a preparar um disco de “standards”, explicou. Só que tem tendência a escangalhá-los com os acordes errados, diz ele, exemplificando com uma versão “partida” de “As time Goes By”. Decidiu portanto escrever os seus próprios temas clássicos, chamando-os de “Future Standards”. “É assim que eu trabalho” disse. “Estas canções não estão prontas ainda, preciso da vossa ajuda. Estarão prontas no final desta digressão”.
Ouvimos assim alguns esboços de temas novos, todos ao piano: “Impossible Thing”, “Refusin’ to be loosin’”, “ A book you’ve read before” são canções de amor de travo jazzy, que parecem vindas de outro tempo.
Com a sua presença magnética, Howe é um verdadeiro entertainer. Fala com o público como se falasse com velhos amigos, conta histórias, fala do casaco “Hugo Boss” de imitação que comprou em Lisboa, de como seria bom que os empregados de mesa fossem videntes: “Chegarmos ao restaurante e o prato já estar na mesa. Uau”. É simpático e espirituoso, acede a pedidos de músicas e é dono de uma encantadora descontracção.
O concerto prosseguiu com uma comovente e bela versão “standard“ de “Shiver”, do clássico dos Giant Sand “Chore of Enchantment”, de 2000, seguida de mais uns pedaços de músicas novas – “Esta ainda não tem letra, só uma palavra – Clear”, brinca Gelb.
Na voz de Howe Gelb, “Cry me a river” de Julie London transforma-se noutra coisa, tão evocativa que faz lembrar autoestradas ao luar e fogueiras nas planícies noturnas do Arizona. Pode-se tirar Howe Gelb do deserto e pô-lo a viajar na Europa meses a fio, mas não se pode tirar o deserto de dentro de Howe Gelb.
“Bottom Line Man”, também de “Chore of Enchantment”, e “Chunk of Coal”, a segunda faixa de “Blurry Blue Mountain”, de 2010, encerram a fase do concerto que Howe chamou de “me, the piano player”.
Gelb pega na guitarra e toca uma versão avassaladora de “Paradise Here Abouts”, do disco a solo de 2006 “’Sno Angel Like You”. É uma prestação em modo pleno de bluesman endiabrado. O cantor martela a guitarra com paixão, deixando o público completamente rendido numa das maiores ovações da noite.
A voz de Gelb não é afinadinha, nem nunca foi, e a sua forma de tocar piano e guitarra é imprecisa e com notas falhadas. Mas o seu carisma e musicalidade transformam estes supostos defeitos em sedutoras virtudes, fazendo dele um artista ímpar no panorama musical actual.
Continuando na guitarra, Gelb interpreta depois algumas músicas mais recentes: “Song So Wrong” e a fantástica “House in Order”, ambas de “Heartbreak Pass”, álbum de 2015 dos Giant Sand, e ainda “Windblown Waltz”, de “Dust Bowl”, álbum a solo de 2013.
O encore chega com mais uma versão inspirada: depois de alguma hesitação, Gelb volta ao piano para tocar “Moon River”, um original de Henry Mancini e Johny Mercer, fechando o concerto com chave de ouro.
“Há quem goste de apresentar um concerto com a setlist toda alinhada à partida, onde não há uma única nota fora do sítio. Mas algumas pessoas não têm isso no seu adn”, confidenciou a dada altura. “A vida é mesmo assim. Não há setlists”.
Galeria fotográfica (Fotos de Joana Constante)
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