Se para alguns a iluminação chega de forma precoce, outros há que descobrem o sentido da vida já muito depois dos últimos suspiros da adolescência. Miguel Reis (n. 1989), que na história da música será lembrado como Tio Rex, nasceu em Lisboa, veio com dois anos para Azeitão e fez a sua vida escolar e social em Setúbal, mas foi num lugar remoto da Madeira que descobriu e expandiu a sua vocação de cantautor.
Formado em Gestão de Empresas Turísticas para os lados do Estoril – agradece à mãe por o ter quase obrigado a isso -, quis o destino que Miguel Reis fosse exportado para a terra das bananas e dos jardins floridos para um trabalho de dois meses que transformou a sua vida, vivendo sozinho em terra de nenhures a 60 quilómetros do Funchal.
Tio Rex tinha começado – pouco antes da ida para a Madeira – a tocar na guitarra clássica do pai da namorada de então – deixada para trás como faziam os marinheiros -, o que quer dizer que só depois dos vinte se tornou músico, isto sem qualquer formação académica: «Comecei a tocar dedilhados antes ainda de saber os acordes. Tocava aquilo que gostava, Iron & Wine, Kings of Convenience e por aí fora, a tentar dissecar aquilo tudo. Apanhei alguns vícios, padrões e sons que acabam por compor o meu som de hoje», disse-nos num final de tarde no 3/15 dias, em Setúbal, sentados numa mesa a poucos metros da porta de forma a ser mais fácil ir alimentando o desejo de nicotina.
Na Madeira conheceu um casal de sul-africanos, donos de um bar, que foram a sua família instantânea num lugar inóspito onde chamuscavam porcos em garagens. No bar da vila começou a dedicar-se às desgarradas, onde por entre o dominó e o virar de copos tratou de alimentar a paixão pela música – foi lá que compôs a sua primeira canção -, algo que o ajudou a suportar a imensa solidão que então viveu. Na despedida, que acabou por ser simultânea, ofereceram-lhe a guitarra onde se habituou a tocar, a sua primeira, que ainda guarda em casa como uma cicatriz de tempos agri-doces.
Como em muitas histórias de (des)encantar, foi o desamor o responsável pelo primeiro grito de Tio Rex, corria o ano de 2012: «Precisei de uma terapia, foi assim que nasceu o projecto. O primeiro EP foi literalmente uma exorcização de demónios. Estava numa zona um bocado negra por causa do fim de um relacionamento… lá está, é o maior cliché de todos mas o facto é que é mesmo verdade. Nessa altura, inconscientemente, canalizei o que estava a sentir para a música e foi assim que nasceu o primeiro EP».
Escreveu algumas canções nos turnos da noite do hotel onde trabalhava na zona da Alameda, em Lisboa e, também por sugestão do amigo Hugo Martins– que se tornou também o produtor do disco -, gravou “Tio Rex EP” na casa da avó deste (ver Making Of). «Vamos gravar isto, nem que seja só para a família», decidiram e, em 11 dias num retiro algarvio – com algumas músicas escritas ou acabadas de escrever lá -, nasceu o primeiro fruto de um coração abalado, que desde logo mostrou que a folk sonhada em Portugal tinha encontrado uma das suas maiores promessas, fosse esta cantada em português ou inglês.
Apesar das expectativas estarem longe de serem altas Tio Rex sabia ao que ia: «Queria compor um primeiro EP com cabeça, tronco e membros, início, meio e fim. Foi logo decidido que ia ter um instrumental a abrir e um outro a fechar. Há muita coisa que eu ouço onde eu sinto que a magia está nos instrumentais, e gosto de ter essa componente nos meus discos. Muitas vezes é a forma mais pura de transmitir um sentimento».
Desde então vai alternando a empregabilidade com o gravar de discos, altura em que se dedica a cem por cento à música. Como acontece agora com o EP “Cinco Monstros”, que conhece hoje o seu lançamento em edição física – um trabalho conceptual de Ana Polido da Experimentáculo – e a distribuição e audição via itunes, bandcamp e spotify.
Miguel Reis cresceu cercado pela aura dos anos setenta americanos – Cohen, Dylan, Simon & Garfunkel -, período da história onde a música acompanhou a política e a sociedade ao ponto de crescer com ela. «A minha mãe teve aquela fase que muita gente teve, por volta dos anos 70, início dos anos 80, a cena dos hippies e da boina à Che Guevara. A minha mãe teve sempre muito contacto com esse tipo de cultura e a música que ouvia era reflexo disso, dos seus amigos e de se viver esse tempo. Tanto ela como o meu pai sempre ouviram Simon & Garfunkel e Leonard Cohen, mas também Genesis e Pink Floyd, sons que abriam um pouco a mente às pessoas.»
Mas nem só da envolvência parental se fez a descoberta musical de Tio Rex, tendo o mergulho na folk sido promovido por obra e graça das novas tecnologias: «Descobri Johnny Cash com 15 anos no youtube. E foi aí que comecei a aprofundar a cena dos singers/songwriters que rodavam nessa altura, nos anos cinquenta e sessenta: Dylan, Pete Seeger e por aí fora». Um fascínio que se deu muito para lá dos acordes ou das palavras: «Eram um reflexo do tempo em que viviam, de certa forma da cultura pop que despontava: o Johnny Cash a aparecer em jornais a mandar manguitos, o Dylan todo drogado e o pessoal a odiá-lo quando passou para a eléctrica, tempo de revoluções, dos hippies, de Woodstock. É uma parte da história que me marcou muito e que gostava de ter experienciado. Afinal, estão aí algumas das raízes da música americana.»
Do primeiro concerto, que decorreu no bonito Clube Setubalense em Setúbal, guarda memórias agitadas: «Foi horrível, provavelmente a pior experiência da minha vida; mas se calhar sem ele não teria agora o quinquagésimo. Houve uma primeira parte, que foi brutal, um tipo cheio de adereços, e mal ele acaba chama-me ao palco. Estava a assistir ao concerto, a pensar que ainda ia descontrair um bocado, e entrei um bocado em parafuso. Acho que me enganei bastante mas os discos venderam-se todos, algo acabou por acontecer de qualquer forma mesmo sem ter dado conta». Nervosismo que, hoje em dia, está ultrapassado para Tio Rex, que gosta de perceber os diferentes ambientes onde toca para chegar ao público da forma mais certeira. Basta dizer que, na antevisão popular deste disco, andou por Setúbal a tocar em ruas, praças, bares e até em barcos, num vaivém entre Setúbal e Tróia onde enfrentou o olhar e a curiosidade popular.
Nas suas histórias, pequenos enigmas que pedem para ser desvendados, há muitos fantasmas e amores não correspondidos, o recordar do passado e o projectar do futuro e, como uma sombra, a presença constante da morte. «Eu vivo muito do passado porque sinto que há coisas que me foram roubadas pelo tempo. É algo que está muito presente no “Preaching to a Choir of Friends and Family”. Mas o futuro também, afinal é o tempo que está aqui em jogo. O futuro é algo que vai acabar para todos da mesma maneira e a morte é algo com o qual tenho de viver mas sobre o qual gosto de reflectir e não simplesmente saber que vai acontecer. Tentar esperar qualquer coisa disso, ou não, não há maneira de saber. É um fim para a realidade sobre a qual escrevo, e nesse sentido a escrita tem muito enfoque no tempo e na morte, no fim do tempo».
Depois de um EP, de dois temas lançados apenas no mundo da internet e de um fantástico ameaço de longa duração com o nome de « Preaching to a Choir of Friends and Family », tudo gravado de forma familiar, Tio Rex entrou em estúdio para gravar “5 Monstros”, um Ep de 5 temas que resulta de uma parceria entre a Experimentáculo e a Biruta, esta última sediada no Porto que tem ajudado a divulgar o seu trabalho junto da imprensa e do público.
A origem do nome fica em suspenso – há coisas que ficam melhor na sombra -, mas Tio Rex está longe de ser um alter-ego de Miguel Reis: «Sou eu a contar as minhas histórias, a treinar a minha sensibilidade e a pôr as coisas em perspectiva.» Se escolhêssemos uma máxima de vida trazida para esta conversa, seria sem dúvida esta: «O que é que levamos desta vida se não forem as relações pessoais e as marcas que deixamos nos outros?»
A decisão de escrever em português não foi pensada, mas a partir do momento em que escreveu um par de temas encontrou o fio condutor que acabou com um EP de certa forma conceptual, que fala dos monstros que, à semelhança de Calvin, se escondem debaixo da cama de Miguel Reis. Há Joe, uma espécie de assassino contratado cujo destino é proteger uma nação para que esta não perca o norte, mas também um Gigante, que deu à costa na incerteza de ser recebido com honras de estado ou desprezo. Mas que monstros são estes afinal? «Com as correrias nos dias de hoje, onde temos tudo à distância de um clique ou de um telefone, as pessoas são bombardeadas com duzentas mil coisas ao mesmo tempo, e o que é engraçado é que estão à altura e respondem a isso. Choca-me que se tenha uma vida inteira num telefone, acho que com este estilo de vida deixamos passar muita coisa que acontece à nossa volta, e o “5 Monstros” é enraizado nisso. As pessoas tendem a associar os monstros a criaturas lendárias e míticas e aquilo que fiz neste disco foi mostrar cinco monstros que estão à minha volta e à volta de todos nós, quer sejam palavras, acções ou verdadeiros monstros».
Na mudança integral do inglês para o português – ainda que já tenha escrito anteriormente na língua de Pessoa –, também a sonoridade aparece de certa forma transfigurada, como se a folk desse agora lugar a uma pop que soa por vezes a música de combate, de luta, a caminho da morte olhando-a com ar de desafio, sem espaço para a resignação. Um disco mais pensado, mais trabalhado, até pelo facto de ter sido o primeiro que foi gravado em estúdio, «um teste a mim mesmo, onde aliei o facto de estar a cantar em português à oportunidade que tive de elaborar um pouco mais, e de ter em atenção mais o ouvinte – apesar de continuarem a ser histórias muito pessoais.»
A sua inspiração está longe de ser encontrada em romances literários, aproximando-se mais do terreno cinéfilo e das graphic novels, a «literatura dos preguiçosos». “Joe”, por exemplo, foi um tema inspirado em “From Hell”, livro escrito por Alan Moore que, curiosamente, é o livro favorito de Tio Rex. «É o exercício mais complexo, completo e interessante que já li sobre Jack o Estripador – Joe. A concepção da música é um bocado baseada na minha interpretação dessa história, uma narração na primeira pessoa do porquê de ter feito o que fez, de quem era e do contexto em que o praticou. Mas se quiserem perceber tudo vão ter mesmo de ler o livro».
A partir de agora, o anonimato será algo impossível, mas Tio Rex está preparado para chegar-se perto dos holofotes. Afinal, é para isto que tem trabalhado: «Conseguir viver disto, subsistir, mesmo que seja visto como um trabalho. Que seja. É isto que me dá prazer».
Para um futuro próximo Tio Rex voltará à folk servida de forma mais crua. Há rumores – por ele confirmados – de que está a caminho um disco focado no banjo, ideia germinada após um duelo com Hell Hound da última edição do Festival Fumo. Que será, em princípio, também lançado em Outubro, gravado e apresentado no próprio dia. E, também, a edição de um outro disco que transportará Tio Rex de volta aos anos (19)70, numa homenagem à folk americana.
Lançado hoje, “5 Monstros” será apresentado ao vivo no dia 25 de Outubro, num concerto que terá lugar em Setúbal, na Sociedade Musical Capricho Setubalense. Até lá irá participar, juntamente com Marta Banza – «faz tudo, é parte integrante deste projecto, tira fotos, faz vídeos, canta, é incansável» – no concerto de Kalafate, que terá lugar no dia 4 de Outubro na Casa da Bahia, em Setúbal. No dia seguinte tocará em Lisboa em lugar incerto, onde as pessoas serão abordadas na rua e convidadas a assistir a um concerto quase surpresa e instantâneo que será gravado para posterior exibição numa Internet perto de si.
Por agora deliciem-se com “5 Monstros”, um conjunto de poemas acompanhados por harmonias de se lhe tirar o chapéu. Músicos assim, que enfrentam a morte com um sorriso nos lábios, contam-se pelos dedos de uma só mão. A folk portuguesa tem agora um novo herói, um Tio ao qual certamente não irão faltar sobrinhos e sobrinhas.
Os créditos e os direitos de todas as fotos pertencem a Marta Banza.
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