Antes do mundo se ter transformado num lugar ainda mais estranho, 2020 estava a ser um ano incrível para Filipe Sambado. Para além de não ter levantado a taça no Festival da Canção por uma questão de milímetros – e bem que fez por merecê-lo –, com uma canção que noutro tempo e lugar poderia na boa ter sido cantada pelo mestre José Afonso, lançou “Revezo” (Maternidade, NorteSul, Valentim de Carvalho, 2020), rodela com canções que se ouvem como fragmentos de um diário a que só poderemos chegar, como já vai sendo tradição, após se decifrarem alguns enigmas com o selo Sambadiano.
Depois dos discos “Vida Salgada” e “Filipe Salgado & Os Acompanhantes de Luxo”, “Revezo” atira com o low-fi e o reverb às urtigas, mergulhando a fundo nas raízes da música popular portuguesa para lhe trocar as voltas sem qualquer prurido. A voz de Filipe Sambado surge cristalina, chegando-se à frente sem artifícios ou camadas, tratando de mostrar ao que vem logo na abertura com “Tusa Mole”: “E o que eu queria dantes/Agora já não me apetece”, canta-se, na companhia de uma guitarra sem electricidade, com os coros a ajudar no despertar da coragem para abandonar o conforto do sofá e trocar a alcatifa pelo empedrado das ruas.
Em “Jóia da Rotina”, encontramos o espírito da pop made in Portugal com o impulso transgressor de uma Rosalía, pelo menos até ao surgimento de uma flauta e de uma caixa de ritmos que dispara em paralelo com castanholas e tambores, que parecem querer convidar os gigantones para a festa. Ergue-se aqui uma estátua sonora a essa jóia da rotina, que faz nascer o desejo de um regresso precoce a casa motivado pela descoberta de um novo mantra: “Ter amor para dividir”.
Em “É Tão Bom” é novamente a flauta a marcar o ritmo, seguida por uma voz feminina, um teclado vintage e mais castanholas. Fala-se da descoberta do amor depois de meses perdidos na noite, numa declaração passional que vai muito para além do previsível amo-te: “Eu e tu dá tanto jeito” – ou, se preferirem, “Eu e tu é tão bom”.
“Gerbera Amarela do Sul” é música de contestação, protestando, enquanto os tambores se agigantam, contra as teses aristocráticas, a ciência vazia da opinião, os eucaliptos plantados no lugar dos pinheiros ou o desplante das cunhas, num país onde quem se lixa é – e será sempre – o mexilhão. O tropicalismo e a roupa de praia são apenas disfarces neste manguito à representatividade.
Quem nunca, como em “Pasoquinha Pra Novela”, terá pensado assim, ao ver esfumar-se o fim-de-semana?: “A mim quem me dera/Não ter segunda-feira/Se não for pra ser aqui”. Há um baixo bem gingão, palmas ritmadas, uma flauta pastoral e coros polifónicos, onde se promete viver cada dia como se fosse um domingo despreocupado.
Em “No Leito”, uma caixa de ritmos e uma guitarra acústica dançam apertadinhas e de mãos nas ancas uma da outra, numa canção que é um hino à vida: com todos os erros cometidos, todas as rugas ganhas, todas as cambalhotas bem e mal dadas, ou esticando de manhã os lençóis que, vá-se lá saber porquê, enrugam mais no meio. São versos de alguém que se tornou melhor pelo toque de um outro, e que teve a sorte de dar de caras com um amor que é bem mais do que mera esperança. “Resta-nos ficar para ver” parece-nos o plano perfeito.
“Mais Uma” é música popular portuguesa dos sete costados, numa canção enigmática e carregada de significado, que parece ser uma seta apontada ao racismo e à demagogia, onde há gente enterrada sem ser capa de jornal e caras pretas lavadas com cal. No meio de tanta limonada servida com descaramento, valha-nos isto: “Haja quem de bom sucesso/Mostre a pele em alegria”.
“Bitola” é música portuguesa acompanhada pelo rugar de tambores e palmas sicronizadas, com muitas anfetaminas e outros cristais que até na cerveja são diluídos para subir a fasquia da noite. Vai com calma, “ó puto bandalho”, há mais noites para curtir.
“Não quero mais este fardo de seguir em frente”, canta-se em “Este Fardo”, tema com aquele embalo e teclados que imaginaríamos encaixar num lado-B dos Pulp em tempos de “This is Hardcore”. Será esta fardo a própria vida? Irá a liberdade chegar apenas com a morte? Ou será a liberdade individual alcançada pela libertação dos juízos alheios? Pensem nisso.
A terminar temos “Imagina”, o poema mais bonito de entre “Revezo”, uma promessa de crescimento contínuo onde há língua em lábios molhados e uma espera por pele e poros de mel. E onde há, também, um lugar reservado para quem nos ajuda a ir e voltar do fundo do mar. Um dos melhores discos que vão ouvir este ano com selo nacional.
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