Após uma década em Santa Maria da Feira, o Festival para Gente Sentada, motivado pela procura de um maior investimento, decidiu mudar a sua casa para Braga em 2015. Uma cidade que tem mostrado ser uma boa anfitriã, não desiludindo os ouvintes fiéis do festival. E também esta décima quinta edição, que decorreu entre os dias 15 e 16 de Novembro, não foi excepção.
O festival, co-organizado pela Ritmos, o Theatro Circo, o gnration e o município de Braga, direcciona-se para gente sentada mas não só: os concertos de sábado à tarde no gnration foram para gente levantada. No entanto, durante os concertos nocturnos (os principais) que decorreram no Theatro Circo, o mote foi “estar sentado e curtir a abanar a cabeça”. Tal reproduziu uma visão deliciosa de cabeças de todos os tipos e medidas num movimento conjunto de frente para trás (ou de trás para a frente). De repente, acordámos todos, na nossa cadeira, transformados em insectos-galinhas.
A primeira noite foi composta pela banda portuguesa Sensible Soccers, responsáveis pela abertura do festival, e Kamaal Williams, artista britânico que, embora tenha sido o último a ser convidado para actuar (dado a desistência inesperada de Jonathan Wilson), não acusou a pressão – muito pelo contrário.
Os Sensible Soccers apresentaram o seu terceiro álbum, Aurora, lançado em Março deste ano. Uma mistura de sonoridades envolventes a esboçar uma aurora com resquícios do crepúsculo da noite anterior – sensibilidades, ainda que poderosas, a saberem a nostalgia. Também a participação do violinista Zé, convidado especial para a ocasião, começou por nos levar até um espaço meditativo, num monte calmo nos orientes, onde tudo está e é uno. Num fechar de olhos, e já a banda nos enviava para outro sítio. O público, embora ainda aquém do número de pessoas e da energia atingidos mais tarde, não deixou de se manifestar satisfeito.
Kamaal Williams, de dedos já enraizados nas teclas, coaduna o jazz contemporâneo e experimental com toques do funk e do soul, e veio a Braga acompanhado por um saxofonista, um baterista e um guitarrista. Muito interactivos e constantemente a puxar o público ao momento presente, os quatro aparentaram estar a brincar com os sons produzidos, lançando as ondas de uns para outros, contagiando a plateia com os seus ritmos. “Time for one more?”: que pergunta, claro que há sempre tempo para tal. Que assim seja: “One more time for you, Portugal”.
O sábado foi um dia de concertos muito nutritivo, quando transposto para uma noção simultânea de reconforto e de energia revolucionária, que se sentiu borbulhar por dentro da “gente sentada” ao longo do dia. A tarde foi passada no espaço gnration e, à noite, retornou-se ao Theatro Circo, cuja beleza delicada do espaço a ninguém escapa. Nestes dias de partilha com artistas do mais variado espírito musical, deparámo-nos com o poder que a música exerce sobre o ser humano, capaz de simplesmente nos pegar pela mão e levar-nos com ela: num momento podemos estar todos unidos numa mesma energia a gritar “Diga não”, enquanto noutro já nos estamos a retrair numa isolação contemplativa.
Num sobrepor de batidas, ritmos e voz, Afonso Dorido – aka Homem em Catarse – e a sua guitarra apresentaram-nos temas dos seus últimos discos – tais como “Fazunchar” ou “(Não és) Açor” -, outros mais antigos – como “Teremos sempre Paris” – ou canções ainda não editadas – como “Lembro-me de ti mesmo quando não me lembro” ou “Danças Marcianas”. Além da sua coordenação admirável e da capacidade de encher o palco apenas com 10 dedos e um sintetizador, Afonso Dorido compõe as suas canções de uma forma que alegra a nostalgia catártica com toques de esperança. Também foi possível denotar que o artista gosta realmente do que faz, algo manifestado nos prolongados fechares de olhos e esgares descontrolados das pernas, ao ponto de se recear que a cadeira o deixasse ficar mal. Este desfrutar foi, também, reproduzido em palavras, no qual Afonso afirmou estar “muito agradecido por estar aqui, como sempre quando estou a fazer aquilo que mais gosto”.
Little Friend e Bia Maria actuaram à mesma hora. Parecendo precisar de um pequeno amigo, muitos foram os que se decidiram pelos primeiros. Um “Eles” que se revelou um “Ele”, “abandonado” pelos outros membros da banda, pelo que afinal foi ele a precisar de amigos. E teve-os. O concerto do luso-britânico John Almeida no espaço Café-Concerto RUM acabou por gerar uma atmosfera mais tranquila, a animar conversas de café. Tocando as canções do novo disco A Substitute for Sadness (2019), o artista pareceu distante, quase até a menosprezar a sua própria presença no palco, mas o seu sentido de humor aguçado (“nós somos os Little Friend, e aquela é a máquina de café”, disse enquanto o bar preparava – sim – cafés) e sinceridade tornaram o momento verdadeiramente agradável. Um concerto onde aparentou faltar alguma coisa, talvez sal, mas, partindo de um olhar de fora, até que correu bem; e, quando se o repensa, repensa-se com um sorriso: “Queríamos tocar muitas mais músicas, mas a máquina de café está cansada”.
Um saltinho até à Bia Maria ainda permitiu ouvir a sua doce e bonita voz. A artista mescla pop, bossa nova e música tradicional portuguesa, num estilo muito próprio. Já com o tempo a fugir-lhe pelas mãos, Bia não desperdiçou os últimos dois minutos que lhe restavam, alegando serem “perfeitos para duas canções”.
Ainda que tenha sido um salto de Bia para Bia, é difícil arranjar salto maior do que passar de Bia Maria para Bia Ferreira. Se a primeira nos envolveu num planeta cor-de-rosa, Bia Ferreira levou-nos para o meio da revolução no Brasil, do combate ao racismo e à fobia LGBT: “O Brasil é o país que mais mata LGBT’S no mundo e é o país que a cada 23 minutos assassina um jovem negro”. Com apenas 26 anos, Bia Ferreira é uma mulher e bananas – o seu discurso consegue puxar os mais inactivos e saturados pela incidência actual do tema, e a sua voz é de uma força espantosa que chama por tudo e todos. “Salve todas as mulheres pretas, porque Deus é mulher, e é uma mulher preta”.
A cantautora proporcionou-nos um concerto de tanto ardor, onde tudo parecia bater certo. Tocando nos assuntos mais sensíveis com olhos revolucionários, Bia passou-nos uma forte mensagem: “Estou aqui para dar as notícias que o jornal não passa, para incomodar um pouquinho com as informações que estão rolando, porque se nós fizermos barulho lá e vocês cá… vai dar mais barulho, não?”. E nós entendemo-la, assim como não a vamos esquecer. Ainda tão jovem e já com uma bagagem tão definida – “aja, sinta, ame do seu jeito, sinta orgulho no seu peito”. A temática foi muito sensível, o concerto tocou na pele de todos e a luta de Bia Ferreira tornou-se na nossa luta. Se não para sempre, ao menos nos breves momentos após o concerto – e pequenos passos podem tornar-se adultos.
De volta ao Theatro Circo, foi hora de seguirmos com O Terno e John Grant, numa linha musical que aqueceu e adoçou corações. Os brasileiros Tim Bernardes, Guilherme d’Almeida e Biel Basile, uma tripla angelical vestida de branco, tocaram canções como “Pegando Leve”, “Eu vou” e “Volta”. Envolvendo o teatro em melodias suaves e tão ternas, foi pena que tivessem tido de acabar de forma tão abrupta por causa do cumprimento dos horários. A “gente sentada” bem se mostrou desejosa de mais músicas, mas teve de se contentar com John Grant. O que, de modo algum, foi razão para desmotivo – John Grant prolongou o concerto até muito depois da meia-noite.
Com o seu piano e um acompanhante também teclista, John Grant expandiu a sua poderosa voz pelo teatro. “Global Warming”, “I Wanna Go to Marz”, “Vietnam” ou “GMF” foram alguns dos muitos temas que se ouviram. Um concerto verdadeiramente digno de fecho do festival, tanto pela sua profundidade heróica como pela forma com que o público reagiu: recebeu o artista de uma forma muito calorosa, cantou e esteve sempre com ele até ao último tema.
Um festival de tal forma rigoroso na sua definição, que impeliu festivaleiros dançantes a sentarem-se, mesmo sem ninguém atrás deles. Tão aberto na sua programação e especial na sua forma de ser, agora bracarense. No final, ficou a vontade de “fazunchar” com Afonso, de nos movermos com Kamaal, de lutar com Bia, de amar com O Terno e de pensar como John.
Fotos de Pedro Figueiredo (gentilmente cedidas pela organização).
Promotora: Ritmos
Sem Comentários