“Adoro a Humanidade! Do que eu não gosto é de pessoas.”. A frase de Charles Schulz poderia ter saído da boca do músico Josh Tillman, que se tem afirmado como comentador mordaz da sociedade actual. Depois de 8 ignorados álbuns a solo como J. Tillman e de uma temporada como baterista dos Fleet Foxes, o cantor reinventou-se em 2012 como Father John Misty, no bem recebido álbum “Fear Fun”.
Paradoxalmente, a excêntrica persona abriu as portas à sua verdadeira voz. “É a minha personalidade. Eu tenho uma arrogância estranha e mesquinha”, justifica-se Tillman. “As pessoas ouvem o nome, e sentem desprezo – que espécie de palerma adopta o nome de “Father John Misty”? Mas quando eu o ouço, faz-me rir. Nunca me farto”.
O nome tem funcionado na perfeição – depois de um segundo álbum aclamado pela crítica (o genial “I Love You, Honeybear”, de 2015), chega agora o terceiro, “Pure Comedy” (Sub Pop, 2017). Desta feita Tillman eleva a fasquia, apontando os holofotes ao mundo que o rodeia. Liricamente é um álbum mais dramático, complexo e ambicioso, uma ampla exploração do que significa ser humano em 2017.
Em quase 80 minutos de música, Tillman faz pontaria a múltiplos alvos: a tecnologia, as redes sociais, a classe politica, a hipocrisia reinante, a vacuidade da indústria do espectáculo – tudo serve como lenha para a fogueira da sua indignação. Nem o próprio escapa, e é difícil perceber quando está a ser cínico ou sincero. As letras continuam cheias de observações afiadas, com o cantor a esgrimir um humor ácido que já se tornou imagem de marca.
O disco abre com o tema-título, “Pure Comedy”, que serve como modelo para o que aí vem. A proposta é audaciosa – Tillman analisa toda a história da Humanidade em pouco mais de 6 minutos. Musicalmente não anda longe de “Bored in the USA”, do anterior “I Love You, Honeybear”. O tom é de crítica: ao consumismo, à religião, às grandes corporações, às estruturas sociais inquinadas. Tudo sublinhado pela voz lânguida e melancólica do cantor.
As duas canções que se seguem não são menos brilhantes: “Total Entertainment Forever”, mais animada, salpicada com instrumentos de sopro, e “Things It Would Be Helpful To Know Before The Revolution”, que faz lembrar o “Rocketman” de Elton John a aterrar no nosso actual planeta imperfeito. Segue-se “Ballad of The Dying Man”, um dos grandes momentos do disco, onde Tillman aparece em grande forma, seguro nos falsetos e nas inflexões vocais.
O cantor retorna uma e outra vez aos mesmos temas, com um formato musical simples, mais acústico, mas sempre inventivo e melodioso. Aproxima-se por vezes do country e da folk, como em “The Memo”; outras vezes explana doces baladas ao piano e elegantes orquestrações à anos 70. Tudo misturado com alguns efeitos e samples estrategicamente colocados. É uma música subtil, que se torna lentamente narcótica e comovente, um perfeito contraponto das ideias complexas que habitam nas letras.
“When The God Of Love Returns, There’ll Be Hell to Pay” é, à superfície, uma espécie de espiritual – Father John Misty ajusta contas com o Criador, levando a própria Morte a ver o mundo selvagem e injusto em que vivemos, ao som de coros celestiais arrancados à tradição do Gospel.
A canção central do disco é “Leaving LA”, uma diatribe épica de treze minutos e onze segundos, sem refrão à vista, onde Josh fala da sua crescente fama, entre outras coisas, e mostra a sua habitual veia auto-irónica quando canta “That’s just what they all need/ Another white guy in 2017/Who takes himself so goddamn seriously”.
Alguns temas pedem a disponibilidade do ouvinte – tanto “So I’m Growing Old on The Magic Mountain” como “In Twenty Years or So” são trabalhadas sem pressa, resultando mais extensas, minuciosas, mas de grande beleza (o sintetizador à Vangelis no final de “So I’m Growing Old…” é um achado). É um disco que manda às urtigas o poder de síntese, em favor de uma vibração retro mais distendida.
Enquanto o anterior “I Love You Honeybear” via o músico virado essencialmente para o seu próprio umbigo, “Pure Comedy” está intimamente ligado à América da pós-verdade, governada por Donald Trump, paranóica, desanimada e apocalíptica. A actual polarização política americana, por exemplo, é abordada directamente em “Two Wildly Differente Perspectives”. Trata-se de um disco recheado de grandes canções, denso e complexo, com muitos níveis e patamares, onde podemos encontrar Nietzsche e Marx, Narciso e Taylor Swift, Deus e o Diabo. Sem dúvida um dos grandes álbuns deste ano.
—
Father John Misty actua no Coliseu de Lisboa a 20 de Novembro (bilhetes)
Sem Comentários