Enfrentou cinco monstros, viveu cinco tragédias, ensaiou sobre a harmonia e, já este ano, escreveu sobre o ciclo a que nenhum de nós consegue escapar: vida, amor, perda e morte. Tio Rex, que continua a assinar no cartão de cidadão como Miguel Reis, acaba de lançar uma nova rodela – “Life, Love, Loss & Death” (Cidade Fantasma, 2021), cuja apresentação ao vivo está marcada para dia 20 de Novembro, no Fórum Municipal Luísa Todi (Setúbal). Não há bar aberto mas a festa promete.
Eras praticamente um catraio quando lançaste o EP homónimo no ido ano de 2012. O que mudou desde então, para além de não ser agora o desgosto amoroso que te faz escrever canções?
De facto, comecei isto muito verdinho e inocente. Sem praticamente nenhuma experiência musical – com excepção de dois ou três concertos com uma banda de versões -, Tio Rex surgiu de um impulso, de uma necessidade de me expressar e libertar coisas muito pessoais com as quais não encontrei outra forma de lidar. Seis discos e duzentos concertos depois, e com a validação de quem se tem cruzado com o projecto em discos e ao vivo ao longo destes nove anos, toda a experiência e rodagem que este caminho me tem permitido fazem-me olhar hoje para a (minha) música mais como uma missão: a de ir ao encontro dessas pessoas. De não falar só de mim nas canções e tentar antes servir-me delas para procurar a aproximação com quem entrega os ouvidos e corações às minhas composições.
Há uns anos valentes, um grupo de destemidos gritava com os dentes todos que o punk não estava morto. O teu combate parece ser outro e por isso te pergunto: a folk continua de boa saúde ou já poucos querem saber dela?
Acredito que a folk continua a ter o seu espaço e propósito mas, ao mesmo tempo, muito menos expressão no mercado e nas tendências de consumo de hoje. Quando comecei Tio Rex estávamos numa fase em que a folk estava muito bem representada no mercado por uma vaga de músicos como Bon Iver, Kings of Convenience, Iron & Wine, The Tallest Man on Earth – ou mesmo o Fachada e o Úria no nosso cantinho. O que é facto é que todos eles continuam aí, mas parece-me que desde então têm surgido menos projectos novos ligados a estas texturas. Não sei se por haver menos gente a fazê-la ou se, por não “vender” tanto como nessa altura, não ser um género com tanta visibilidade e pouco impulsionado pelas editoras. Por outro lado, pode haver aqui uma diferença geracional. Com o boom da internet, das produções digitais e a facilidade de acesso a tutoriais parece-me que, por oposição à minha geração que mais depressa se mandava para os instrumentos para sacar malhas e formava bandas com os amigos, a malta hoje está mais virada para produzir todos os sons em casa com apenas um instrumento: o computador.
Já enfrentaste “5 Monstros”, viveste “5 Tragedies” e embarcas agora numa viagem à volta da “Life, Love, Loss & Death”. Partiste para este disco com alguma ideia conceptual?
A minha ideia com este disco foi representar o ciclo de vida transversal a todos os seres humanos. Apesar da nossa auto-consciência nos empurrar para a individuação e afirmação pela diferença, no fim do dia continuo a olhar para a espécie humana como um todo. No dia-a-dia fala-se muito do que nos diferencia uns dos outros quando na verdade, independentemente de nacionalidades, religiões e ideologias políticas, somos todos iguais – todos nascemos, todos ganhamos e perdemos coisas ao longo da vida (física e espiritualmente) e, no fim da linha, a última paragem é sempre a mesma.
Reuniste um grupo considerável de músicos, que se divertem entre banjo, acordeão, violoncelo, trompete, clarinete, acordeão, saxofone, piano ou guitarras várias. É o teu disco com mais camadas sonoras e, em certo sentido, mais colaborativo?
Sem dúvida. Partindo mesmo do próprio conceito do disco, fez-me sentido partilhar estes temas com mais músicos e fazer as canções crescer além dos meus “esqueletos” de voz e guitarra/banjo. Assumindo o ciclo que dá o nome ao álbum como o ponto de encontro da experiência humana, ter mais doze talentosos músicos comigo neste trabalho foi uma decisão harmoniosa que deu ainda mais força ao conceito. Partilhar é bom.
Como é tomar conta do processo por inteiro, estilo ter a própria editora, dar numa de auto-agenciamento e, com jeitinho, vender os discos em mão com assinaturas personalizadas?
É exigente. Está a ser um desafio equilibrar todos os pratos, mas ao mesmo tempo é o preço a pagar para ter mais controle sobre toda a minha obra. Gosto de estar em cima de todos os processos além da criação, e de manter contacto directo com as pessoas que nos continuam a dar a mão e a permitir que se dê continuidade ao projecto.
“The Decadence” é a tua homenagem a Leonard Cohen?
Pode dizer-se que sim. Cohen é um senhor e deve ser lembrado sempre. Não que a canção tenha sido escrita para ele, mas em termos de abordagem e texturas sonoras vai beber muito ao universo das suas valsas.
Em “Our Shared Detachment”, tema para o qual convidaste Conrad Harvey para um momento de poesia, ouve-se isto: “I thought I owned my own perspective but no amount of love protects it. I neglected my own thoughts and now they fester and they rot. I’ve got to burn the plot to let the field be born again… burn to be born again”. Além da vida, do amor, da perda e da morte, a capacidade de reinvenção – ou de renascimento, se preferires um termo mais bíblico – parece estar muito presente nestes temas, seja para reinventar amizades, coleccionar cicatrizes ou não cair no poço. Os teus monstros continuam escondidos debaixo da cama?
Se calhar já não são os mesmos que em 2014. Mas, tal como a vida e a passagem do tempo pressupõem evolução e mutação, saem uns e entram outros. Acho que a resiliência é das qualidades mais bonitas. Tendo a valorizar mais o que fazemos com o que temos, do que aquilo que temos efectivamente. Talvez este sentimento esteja mais presente neste disco que nos anteriores.
O lançamento do novo disco vai ser (praticamente) em casa, com concerto marcado para o Fórum Municipal Luísa Todi (20 Novembro, 21h00). Vamos ter bar aberto?
Vai ser uma festa em grande! Além de ser a apresentação do novo álbum e de contar com a participação de quase todos os músicos que tocaram no disco, é também o regresso aos palcos ao fim de dois anos sem tocar ao vivo. Sendo esta a primeira vez que piso o palco do Fórum com um concerto em nome próprio, esta data acaba também por marcar nove anos de discos e concertos de Tio Rex. Vamos ter uma cenografia toda fofinha da autoria do Ricardo Guerreiro Campos e irei revistar alguns temas de discos anteriores que já não toco ao vivo há algum tempo.
Fotos: Marta Banza
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