Nestes tempos em que o comboio de entradas e saídas parece ter um sentido único que aponta para lá da fronteira portuguesa, Luís Nunes percorreu o caminho inverso, virando costas à Britânia para um bem medido regresso à pátria.
A decisão foi carregada de simbolismo. Anteriormente conhecido como Walter Benjamin, nome com o qual editou alguns EP’s e o longa-duração “The Imaginary Life Of Rosemary And Me”, Luís Nunes atirou com o Walter às urtigas e transformou o anglo-saxónico Benjamin num bem português Benjamim, uma metamorfose celebrada com um festivo funeral que teve lugar num cemitério chamado Lux.
A viver actualmente na vila de Alvito, onde para além de compor os seus temas vai usando o seu toque de midas noutros projectos musicais, Bejamim lançou este ano o seu primeiro longa-duração, onde a língua dos Beatles deu lugar à de Pessoa e seus pares. “Auto Rádio” (Pataca Discos, 2015), disco composto por uma dúzia de temas preciosos, é muito provavelmente o disco do ano com edição nacional, que mostra todo o trabalho de artífice e a centelha de génio que Luís Nunes tem revelado ao longo dos anos em muitos dos trabalhos que integrou, fosse como autor, misturador, produtor ou músico.
Para promover o disco, andou de norte a sul do país numa espécie de volta a Portugal, onde a bicicleta foi trocada por um Volkswagen que parecia pequeno para tanto instrumento e maquinaria. O Deus Me Livro apanhou a sintonia certa e, através das ondas hertzianas, colocou algumas questões a Benjamim.
A Inglaterra ficou para trás e, no regresso à pátria mãe, assumiste o BI português, mandaste o Walter às urtigas e o Benjamin virou Benjamim. De onde surgiu esta epifania pintada de vermelho e verde com um bonito círculo amarelo ao meio?
Surgiu da vontade de escrever sobre coisas novas e da crise da procura de identidade. Nunca é tarde demais para perceberes quem és ou para procurares outras facetas dentro daquilo que já eras. É muito chato estar sempre no mesmo sítio e para mim começou a fazer muito mais sentido escrever canções na minha língua. É engraçado que recebo agora mais comentários dos meus amigos lá fora do que recebia quando cantava em inglês.
“Ela manda em mim…e eu mando no que ela quer.” Afinal quem é que manda, e será este Tarrafal o medo de uma relação mais à séria?
“Eu não mando em nada e, se ela quiser, nunca, nunca mandarei”. É uma questão de conseguires sobreviver ao amor.
Assisti a um concerto teu onde recusaste tocar um tema de Walter Benjamim. É definitivamente um passado ao qual não queres voltar ou, tal como os Blur recuperaram posteriormente “Country House”, ainda te veremos a cantar “High speed love”, “Under your dress” ou mesmo um tema de “The dog follows the bull” com um sorriso nos lábios?
Não adivinho o futuro mas não tenho vontade nenhuma de tocar as canções antigas em inglês, nem acho que faça sentido nos concertos que ando a dar agora. Uma coisa que eu gosto das canções em português é que as pessoas criam uma relação muito mais directa com elas, em inglês fica tudo mais distante.
O que trouxeste de Inglaterra que perdurasse, e de que forma te transformaram os anos que lá passaste?
Trouxe muitas amizades que perduram, isso foi o mais importante. Trouxe tantas experiências das quais não sobram só memórias, foi um período que me transformou profundamente como pessoa e como músico. Não haveria “Auto Rádio” sem Londres nem eu olhava para a música como olho agora. Inglaterra fez-me querer cantar em português, isso por si é um impacto monumental na minha música. Depois o facto de ter estudado e trabalhado por lá também me trouxe maneiras diferentes de olhar para tantas coisas diferentes, da vida e do trabalho.
A julgar pelo vídeo de “Os teus passos”, pareces ter posto Alvito inteiro a mexer. Como tem sido a vivência no Alentejo?
Óptima! Alvito é Hollywood.
“Os teus passos” é um verdadeiro single, uma pérola pop desavergonhada que se calhar não terias gravado nos teus tempos ingleses. Poderá ser visto como um sinal desta tua ressurreição, um reflexo de um momento particularmente feliz da tua existência?
Ou o contrário. Eu adoro a ironia. Acho que quando escrevi a música estava num momento particularmente duro da minha existência e precisava de fazer canções para me animar a mim próprio. Escrever canções é a minha própria terapia. Eu soube instantaneamente que aquela era a música que iria ser o single e não tenho vergonha disso, acho muita graça a ir descobrindo o meu próprio disco à medida que o vou fazendo e ir jogando com isso.
Como foi a experiência de andar numa espécie de Volta a Portugal em Auto Rádio, com cerca de trinta concertos em tantos outros dias?
Foi boa demais para resumir num espaço tão curto. I-N-C-R-Í-V-E-L.
Como despertou em ti este sentido quase político, onde damos por ti a falar da guerra de África, do Tarrafal ou daqueles que partem para o exílio?
Isso sempre foi algo que me acompanhou, sempre tive um fascínio grande por política e história. Sou daquelas pessoas que gosta de ter discussões acesas à mesa sobre política, gosto quando as pessoas põem paixão naquilo que dizem. Sempre tive pena de não poder falar sobre isso quando escrevia canções em inglês, precisava da propriedade que a língua confere a assuntos que são só nossos. Quanto às memórias de África, vêm-me da família, foi o meu imaginário de criança e as histórias do meu pai sempre despertaram em mim um fascínio imenso. Depois em Alvito há muita malta ligada aos movimentos revolucionários ou o Quinito que foi para a Guiné, e isso despertou em mim algo adormecido que passou logo para as canções.
O teu currículo como produtor, mestre dos arranjos ou “mero” colaborador é impressionante. Tocaste teclas e deste uma mãozinha no fantástico disco do João Coração – “Muda que muda” -, produziste o melhor disco da Márcia – o “Dá” -, misturaste os discos dos You Can’t Win Charlie Brown… e podíamos estar nisto o dia inteiro. Chegou a hora de te renderes ao egoísmo ou o teu espírito altruísta vai continuar a fazer das suas?
Em relação à questão do altruísmo também é preciso dizer que sou formado em engenharia de som e adoro produzir discos, mas que isso é uma parte do meu trabalho de músico. Tenho a sorte de poder trabalhar com gente tão talentosa que também são meus amigos. Esta é a maneira com que mais gosto de estar na música: poder trabalhar com quem quiser trabalhar comigo e ir trocando experiências com tantos músicos fantásticos. Há uns meses estava a gravar os PISTA em Alvito e, a meio de uma pausa, pedi ao Ernesto (guitarrista) para tocar uma malha de guitarra no meu disco. E ficou! Isto é um luxo.
Este disco parece reunir, para lá do reconhecido toque de Midas Benjaminiano, ecos de algumas das tuas referências maiores como Tom Jobim ou Beach Boys. É este o (primeiro) disco de uma vida?
Este é o primeiro disco em que, para o bem e para o mal, me assumi a mim da forma mais crua possível – em português não há maneira de disfarçar a minha voz. Não querendo estar a diminuir as coisas que fiz no passado, acho que é o meu primeiro disco com plenos direitos.
Como foi estar vivo no teu primeiro funeral celebrado no Lux?
Foi o primeiro dia do Benjamim. Eu sabia que estava a fazer algo que tinha de fazer e foi muito estranho. O meu amigo Moritz veio de Londres para tocar teclas e quando o larguei no aeroporto, no dia a seguir ao concerto, desatei a chorar enquanto conduzia. Acho que percebi que foi o fim de uma etapa óptima da minha vida e o início de outra que espero que seja ainda melhor.
Pergunta inevitável. O que podemos esperar de ti nos tempos mais próximos?
Concertos, concertos, concertos, discos, discos, discos.
Fotografias: Gonçalo Pôla
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