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Deus Me Livro prosseguiu viagem pelos Caminhos do Ferro

Por Ana Ilhéu · Em 02/05/2018

Uma das melhores formas de confirmar a relevância de uma experiência é verificar até que ponto perdura: em pensamentos que regressam, em sensações que persistem, em desejos que se antecipam, quais sensações em género de ritmo ondulante, gerador de desejo de regresso, sentimentos de gratidão, ideias e acções para partilhar e renovar.

Dois fins-de-semana pelos Caminhos do Ferro – de 13 a 15 e de 20 a 22 de Abril -, num trajecto que passou pelo Entroncamento, Vila Nova da Barquinha, Abrantes, Mação, Constância e Tomar, confirmaram a suspeita de estarmos perante uma iniciativa que nos transportou para terras do Médio Tejo, uma realidade culturalmente riquíssima, uma verdadeira oportunidade de libertação dos sentidos e de entrega à grandeza de locais carregados de potencialidade e de generosidade.

Desde logo, a forma como ainda se sente acolhido o recém-chegado, citadino ou não. Há integridade e identidade na forma de receber, no contacto que se consegue com o quotidiano das gentes que circulam na rua e se interessam por quem ali está, dispondo-se a olhar nos olhos e a sorrir num verdadeiro abraço de aconchego e aceitação. Sendo esta uma sensação que persiste mesmo nos aglomerados mais populosos, é especialmente evidente em povoações de menor dimensão, onde se captam expressões de um agradecimento mudo e meio envergonhado pelo interesse despertado em transeuntes de outras paragens, quiçá mais pungentes.

O aconchego do acolhimento completa-se com a já expectável diversidade e qualidade dos alojamentos e da gastronomia, especialmente se entendermos a região como um todo, um circuito composto por concelhos diferentes que se complementam, disponibilizando uma verdadeira rede de ofertas turísticas e de experiências etnográficas.

Pelos Caminhos do Ferro, na sua segunda edição em anos seguidos, é possível realizar percursos diferentes uma vez que existem iniciativas ou espectáculos que coincidem no horário, divergindo nos locais, permitindo uma resposta simultânea nos seis territórios envolvidos na programação. Nesta lógica de percurso acontece a apresentação de quase todos os espectáculos pela região, em especial aqueles que têm lugar nas ruas, em interacção com a comunidade e, muitas vezes com a co-autoria ou a participação activa da mesma, espaço de revelação de artes e ofícios e habilidades, ou tão só curiosidades.

Se, entre 13 e 15 de Abril, houve espaço para a animação de rua com a Dragonologia e espectáculos de novo circo, em sala esteve a música com Hélder Moutinho, Daniel Pereira Cristo, Pedro Jóia, os Sopa de Pedra e Teresa Salgueiro.

Entre 20 e 22 de Abril, o percurso contemplou espectáculos de dança contemporânea, com Hu(r)mano, de Marco Silva Ferreira, com os intérpretes a elevarem-se a uma atmosfera paralela ao real, numa reflexão imaginária em torno do movimento humano;

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música e teatro de rua, com a sonoridade única dos franceses Les Chant Des Pavillons La Fausse Cie que tocam os seus instrumentos metamorfoseados, suplicando a atenção dos transeuntes e mesmo dos automobilistas com os quais procuram interagir;

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música em sala com o brasileiro Castello Branco, e os portugueses Bruno Pernadas e Gaiteiros de Lisboa; Baloiçar, teatro para bebés entre os 4 e os 36 meses, uma oficina de música e movimento, num ambiente sonoro e visual cheio de estímulos;

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e ainda, para todas as gerações, Romeu & Julieta, do Teatro de Praga, uma criativa representação em torno da confecção de um cheesecake.

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Ao longo dos seis dias que compuseram os dois fins de semana, quatro artistas das artes plásticas à música promoveram e orientaram a (re)descoberta da região a partir da inspiração que a mesma lhe suscitou, depois de uma permanência de algumas semanas. Vila Nova da Barquinha, Constância, Entroncamento e Mação viram a sua história, num balancear entre o factual e o mito, ser percorrida por naturais e turistas, numa perfeita simbiose de descoberta e preservação de memórias e identidades.

A título de exemplo, com Lara Soares, “De Mapa na Mão Com Cheiro A Laranja”, percorremos Vila Nova da Barquinha, uma proposta de percurso artístico em forma de Mapa-Jogo. Assume o formato de mapa mas é mais do que isso, é um cruzamento entre uma dimensão factual e uma dimensão do imaginário. O Mapa oferece pistas e aponta caminhos possíveis, mas não os define. Pode ser feito individualmente, em família ou em pequenos grupos. Sem tempo definido, a experiência dura o tempo de cada passada e do imaginário dos que percorrem este caminho. O ponto de partida é dado ao sabor do Pirilau, Ex Barquinho, doce conventual com origem no Convento de Loreto. Na Rua 5 de outubro a tarefa é observar. Ver coisas Diferentes. Descobrir um pormenor a que dar um novo olhar.30 segundos. Fechar os olhos e ouvir longe, perto, pessoas, pássaros, talvez um comboio que atravesse a paisagem. Segue-se o plantar de uma flor, um girassol, tratando-se as almas em tom de violino. Mais à frente encontra-se uma árvore do desejo que aguarda um gesto partilhado com o mundo. Perante a mesma a tarefa consistiu em escrever em pensamento um desejo e atar a fita na árvore. Com delicadeza.

 

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De seguida, perante uma cesta repleta de laranjas, encontrar o melhor sítio para espetar as unhas. Uma casca mais ou menos resistente. Som quase inaudível. Uma névoa de aroma que quase chega ao nariz. Ter cuidado com os olhos. Agora as mãos húmidas, o cheiro a primavera e um pouco de casca que cai no chão. Novamente: unhas, névoa,…pela travessa abaixo. Escolher comer ou escolher pousar. Esfregar, cheirar, deixar secar. Por último, Momento da Barca Assemblar. E aqui ou mais alem na água largar. A viagem … onde vai terminar?

Também na senda dos percursos de descoberta das terras conversámos com João Bento habituado a fazer trabalhos relacionados com arquivos e com memórias, como foi exemplo o estudo sobre a Estação de São Bento e os caminhos que a circundam, ou um calendário sonoro com gravações por vários sítios do mundo.

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O Entroncamento, terra miticamente ferroviária, ficou entregue a João Bento, e vice-versa. O artista utilizou no percurso uma estratégia assente na captação de imagens, de (re)descoberta de uma “terra de ninguém”, frequentada por gentes que chegam e partem, como ele próprio o fez tantas vezes, a caminho do Fundão.  A descoberta do Entroncamento foi feita a partir de um conjunto de pessoas que conhecem bem o território, “todas elas com histórias que cruzam outras histórias, que vêm de outros lados”, como é o caso do desportista sexagenário que esteve na Índia; o proprietário do restaurante Retornado com vida anterior em Moçambique; ou o proprietário de um outro espaço comercial que viajou pelo mundo, trabalhando em barcos – “Histórias que trazem agregadas histórias de outros sítios”. “ O Entroncamento como terra de partida e de convergência, uma oportunidade de abertura ao exterior mas também de entrada de coisas menos boas, aliás como todas as redes de comunicação, mesmo as mais actuais, que funcionam para o bem e para o mal”.

Para João Bento, ao dar atenção a estas pessoas acabou por dá-la também a si próprio, pelo contacto com as suas histórias, algumas especialmente trágicas. Há a acrescentar o desafio técnico de montar todas as linhas de som, com questões logísticas complexas.

No final da experiência há o ganho de superar a tendência para a depreciação do Entroncamento, algo que rapidamente desaparece depois de dada atenção aos detalhes do espaço e às histórias das pessoas.

Na senda de colher o sentir de quem é artista em terras de tamanhas artes, o Deus Me Livro conversou com o músico brasileiro Castello Branco que em Constância deu o primeiro de oito espetáculos em Portugal, integrados na digressão que se encontra a fazer pela Europa, apresentando o seu segundo disco “Sintonia” e o livro “Simpatia”, já em 2ª edição (Rettec artes gráficas e editora).

 

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“Simpatia” surge como forma de alerta para a importância de também atribuir valor à simpatia, em complemento da empatia. Nas palavras do autor, “a empatia aprece como uma coisa boa e a simpatia o oposto, ruim; a pessoa devia ser empática e não simpática. A empatia é uma coisa que a gente tem com o outro e a simpatia é algo que temos connosco; ser simpáticos connosco, como se estivéssemos a ser empáticos com o outro; manifestar bem-estar connosco. Simpatia tem o “sim” nela, como se fosse “um sim a nós”. De entre os 110 poemas breves que compõem o livro, o nº 22 afirma “seus pais também nunca tiveram a idade que têm”. Na sua perspectiva trata-se de um apelo aos filhos, especialmente os mais jovens, no sentido de “perdoarem os seus pais, de os entenderem” considerando tratar-se de uma máxima que o ajudou bastante porque muitas vezes nós não nos apercebemos que “nossos pais estão a cada ano ganhando experiência, lidando com o que é novo para eles também”.

Há, no livro, um registo auto-biográfico com a preocupação de ser útil também aos outros, umas coisas mais profundas que outras, incluindo relacionamentos. Os poemas nº 40, “meu corpo não dá conta mais de mim” e nº 101 “a mão mais firme é aquela que cede”, podendo ser usadas pelo leitor como mantras, ajudam o autor a sentir-se mais próximo das pessoas, percebendo como o acolhem. O facto de ter sido criado desde muito pequeno por mulheres, no convento no qual a sua mãe se recolheu e permaneceu, leva a que Castello Branco, quando jovem adulto, fora daquele espaço protegido, se tenha apercebido que o mundo não era tão pacífico. Escrever tem sido para si “uma forma de voltar para o útero, para as mães que o criaram”.

Num futuro próximo podemos esperar de Castello Branco o investimento no som, nas canções, mas também na escrita sobre viagens, sobre a experiência de enfrentar as pessoas e de escrever para si como se fosse “uma cobaia viva” – “Nos meus espetáculos as pessoas estão vendo o que eu estou vivendo no momento porque me entrego”; “o que digo são coisas para eu lembrar para eu não errar”. A curto prazo podemos ter esperança de vir a ter connosco o autor com um disco novo, outros livros, outras experiências.

Em Julho os Caminhos do Médio Tejo prosseguem com os Caminhos da Água e, em Outubro, os Caminhos da Pedra. Neste momento, por referência aos do Ferro, há quem destaque nesta segunda edição a especialmente bem conseguida programação, em diversidade e sequência. Conversas avulsas, inopinadamente captadas entre responsáveis, autarcas e munícipes, revelam o agrado de quem recebe uma iniciativa que deseja promover a região e despertar interesse turístico, que o faz com respeito por quem ali vive, atenta às particularidades e rotinas. O upgrade poderá estar, desde já, na diminuição de algumas reticências, sendo notória a mobilização dos naturais em termos de aproveitamento da programação e de cooperação em muitos espectáculos.

 

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Caminhos do Ferro

Ana Ilhéu

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