Se há dias se escreveu por aqui que Daniel Knox era uma espécie de homem-sombra, que melhor cenário para um concerto seu do que o interior de uma Igreja cercada por um cemitério que recusa flores artificiais, tem um pequeno templo escondido na obscuridade e alberga, como um dos seus ilustres hóspedes, o romancista Henry Fielding, conhecido pelo humor e espírito satírico muito particulares?
Comecemos pelas coisas difíceis de explicar. Como o facto de haver concertos com direito a uma promoção desregrada, dividida entre jornais, televisão e redes sociais, enquanto outros, que mereciam um ecrã gigante a cada esquina, passam por nós quase sem darmos por isso por isso. Quase. Foi o caso de Daniel Knox, autor de um dos mais incríveis discos de 2015, que neste concerto organizado pela Associação Cultural Nariz Entupido contou com (apenas) cerca de duas centenas de fiéis – palpite a olho nu – que, certamente, foram para casa de coração cheio.
A verdade é que tudo começou com uma escandalosa falsa partida, com o piano alugado – o verdadeiro não é muito fácil de transportar, Knox disse nisso invejar os guitarristas – a mostrar acanhamento e o som de retorno a deixar Knox perdido entre a irritação e o desespero. Se juntarmos a isso o facto de no concerto de Coimbra lhe terem roubado as folhas com as letras que o acompanharam durante uma extensa tour que em Lisboa chegava ao fim, digamos que os índices de confiança aparentavam estar tão em baixo quanto um dia de crash bolsista. Puro engano.
Vestido com uma T-Shirt preta e usando uma caneta por detrás da orelha, Daniel Knox ia mantendo o olhar centrado no piano, tratando-o entre um carinho imenso e uma profunda raiva, dependendo das emoções que o levavam a viajar entre o preto e o branco das teclas.
Num concerto que percorreu os já editados três longas-duração e que permitiu ainda um vislumbre do quarto que está para chegar em 2016, Daniel Knox mostrou de que forma a sua música reflecte estados de espírito, memórias, dilemas, ganhos e perdas, uma vida de altos e baixos que olha muito para o passado como forma de reencontrar um melhor futuro.
Para quem tinha passado as últimas semanas a assistir a vídeos no youtube, não foi novidade o facto de Knox ter contado como nasceram muitas das canções. Porém, ainda que muitas das coisas tenham sido repetidas – afinal, é difícil contar a mesma história cem vezes de forma diferente -, Knox fê-lo sem dar a ideia de ter a lição estudada, um pouco como se estivesse a falar consigo próprio numa meditação sobre o seu papel no mundo – mesmo que esse mundo seja, muitas vezes, do tamanho de Springfield.
Sobre “Blue Car”, história de um carro sem condutor que quase bateu na casa de Knox quando este tinha dez anos, falou-se da tristeza de não podermos visitar o nosso eu passado, avisando-o dos perigos – e sobretudo desilusões – que estão a caminho; “Redhanded” foi motivo para evocar um lugar em Indiana onde se vai para – cuidado que há crianças na sala, lembra Knox – se ser entretido; “David Charmichael”, já se sabe, foi o amigo imaginário mas muito verdadeiro de Knox quando este era puto, e com o qual esbarrou há não muito tempo num encontro que esteve longe de ser pacífico: houve lágrimas, insultos e até alguns murros; “You Win Some, You Tie Some” serviu para trazer à baila o amor de Knox ao jogo, sobretudo no que diz respeito a mexer nos botões das outras pessoas ou a gastar dinheiro para ganhar coisas ridículas – lembram-se dos peluches de feira?; em “Ghost Song” Knox declara a sua não vontade de ir para o céu, preferindo antes ser um fantasma que bate às portas e rouba coisas sem que ninguém dê por isso; “Lovescene” é o mote para Daniel declarar que já amou alguém que, afinal e em segredo, amava muitas outras pessoas ao mesmo tempo, afirmando que o amor nos faz fazer coisas realmente estúpidas – como, no seu caso, dançar; “Me And My Wife” é uma canção para uma mulher imaginária – Knox nunca foi casado (apesar de ter uma filha de dezassete anos) mas gosta muito de pensar nisso, de inventar histórias a dois; “White Oaks Mall”, conta-nos Knox, é uma música sobre um “shitty mall” que um dia, há muito tempo atrás, via como um entreposto da amizade – uma música que se ouve como um bonito monumento às suas memórias, como ir com o pai ao cinema, andar de escadas rolantes ou ser constantemente rejeitado por mulheres.
Num concerto que teve tudo de memorável, Daniel Knox deixou a promessa de regressar a Portugal para o ano. Onde quer que isso aconteça, lá estaremos.
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