Teve tudo, mesmo tudo para correr mal: o barulho do ar condicionado, a fazer lembrar uma daquelas salas que serve de iglô a servidores gigantes e de barriga cheia; uns bifes algo descontrolados, com o volume afectado pelo consumo desenfreado de cerveja; um ruído manhoso, que foi da primeira à última faixa e testou os instintos Dexterianos de cada um dos presentes – se calhar não os dos bifes; ou, também, a incerteza de saber como o gin, trazido descontraidamente numa garrafa vistosa, iria afectar o desempenho de Bill Ryder-Jones, cronista do apocalipse terreno mais conhecido como existência.
Depois de passar uma dúzia de anos com os Coral e a sua pop a piscar o olho ao psicadélico, o multi-instrumentista, compositor, cantor, escriba de canções e produtor Ryder-Jones embarcou numa carreira a solo, que o levou a compor bandas-sonoras para uma longa e algumas curtas-metragens, a trabalhar com os Arctic Monkeys e a gravar quatro recomendados discos de estúdio, entre os quais se encontram “If…”, baseado no romance “Se numa noite de inverno um viajante…”, de Italo Calvino, o muito pessoal “West Kirby Count Primary”, gravado no quarto onde viveu a sua infância, ou o mais recente “Yawn”, um épico sobre o quotidiano e o lado agridoce da existência.
“Wish Me Luck”, arriscou Ryder-Jones ao subir ao palco do Musicbox, dizendo, depois de um arranque com “Mither”, que o que irá acontecer dali para a frente seria basicamente mais do mesmo: “too slow, too quiet”.
Liam, o companheiro de palco que foi arranhando cordas eléctricas em alguns temas – e que dará o nó num destes dias -, serviu para uma curta conversa sobre casamentos e padrinhos, bem como para colher umas “Wild Roses” em honra de uma ex-namorada.
Se, em disco e em formato banda, somos levados a recordar muitas vezes o desespero e o sofrimento de uns extintos Sparklehorse, neste formato quase solitário, onde a voz de Ryder-Jones surge contornando teclas de piano e dedilhares de guitarra arrancados à cinematografia mais light de um David Lynch, é Ian McCullough e os Echo & The Bunnymen que se chegam à frente, a jogar blackjack no casino de Alex Turner.
“Aquelas pessoas estão a incomodar mais alguém?“, ironiza em relação aos já anunciados bifes – que entretanto pedem desculpa -, antes de uma versão imaculada de “Don’t be scared”.
Até ao encerramento há tempo para deixar cair um copo, confessar que normalmente fala mais e diz mais piadas, falar de “Seabirds” como a sua melhor canção ou mesmo aceitar discos pedidos, desde que não impliquem solos manhosos pelo meio ou uma percussão que, naquela noite, apenas poderia ser imaginada. E, igualmente, para baralhar a setlist desenhada para o serão, que terminou com uma sentida interpretação de “Satellites” – onde Ryder-Jones se divertiu nos acordes a negar qualquer semelhança com Pixies ou Lou Reed. Numa outra geografia, sem ruídos alienígenas e com bifes mal passados teria sido épico. Assim, foi apenas incrível.
Promotora: Gig Club
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