Se, por distracção dos seguranças ou puro engenho de penetra, alguém entrasse no Campo Pequeno na noite de 23 de Setembro sem saber ao que ia, juraria mais tarde aos amigos ter aterrado numa homilia de uma daquelas estranhas igrejas, onde paralíticos saltam da cadeira de rodas enquanto estrebucham um sentido Aleluia.
É certo que passaram 18 anos desde a edição de “Funeral” e, mesmo que pelo caminho a banda tenha perdido muitos fãs, a crítica lhes tenha virado as costas quando se puseram a brincar com reflectores ou Feist se tenha baldado à mais recente digressão, isto após Win Butler ser acusado de abusos sexuais e admitir um adultério de longa duração, a verdade é que o concerto dos canadianos Arcade Fire em Portugal conheceu momentos de puro culto, e só faltou mesmo uma fogueira e gente com pouca roupa a dançar ao redor para se ter chegado ao último patamar da loucura. Pelo menos à superfície.
Esperava-se que “We”, o mais recente evangelho em formato longa-duração, fosse tocado de uma ponta à outra, mas num concerto que ficou perto de atingir as duas horas o modo escolhido foi o greatest hits, com paragens obrigatórias em quase toda a discografia. Um concerto – bom mas não incrível – que se estendeu, a espaços, a um palco secundário colocado no meio da arena, onde Win pôde puxar pelo seu lado de pregador e Régine pelos dotes de dançarina, ainda que o momento em que pisaram juntos o palco tivesse sido, no mínimo, fresquinho. A festa terminou, já no encore, com uma versão de Rebellion (Lies) com um travo a a capella, seguindo depois para o exterior da Igreja do Campo Pequeno.
Nas bolsas de apostas da Internet, há quem diga que a banda perdeu parte da química, e que após o abalo Buttler não é certo que a banda – ou o casal Win/Régine – tenha forças para sair desta imensa sombra que, agora, parece persegui-los a cada degrau da digressão – e fora dela. Apesar da devoção mostrada pelo público, que se alheou do estado emocional dos canadianos, fez a festa e apanhou os foguetes, sentiu-se que algo mudou (talvez para sempre), e que a espontaneidade, a efusividade e a alegria adolescente cederam lugar ao profissionalismo e ao lema “the show must go on”, sendo notória alguma tensão e alheamento entre a banda – que corre agora em busca de um perdão universal, ou de uma espécie de catarse. Não vai ser fácil, a começar logo em casa.
Nota final. Mesmo o crente mais ferveroso terá ficado incomodado quando, após um olhar mais atento entre a leitura de salmos, se deu conta do estado decrépito da igreja. Neste caso, da Igreja do Campo Pequeno que, por questões estruturais ou uma aselhice de todo o tamanho, fez com que a celebração fosse envolta numa confusão sonora benzida pela distorção, onde era difícil perceber quem tocava – ou cantava – o quê. Há muito que não se ouvia um som tão péssimo num concerto.
Alinhamento:
Age of Anxiety I
Neighborhood #1 (Tunnels)
We Used to Wait
Afterlife
Reflektor
Creature Comfort
Age of Anxiety II (Rabbit Hole)
End of the Empire I-III
End of the Empire IV (Sagittarius A*)
The Lightning I
The Lightning II
Everything Now
Ready to Start
The Suburbs
The Suburbs (Continued)
Intervention
Unconditional I (Lookout Kid)
Here Comes the Night Time
Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)
Wake Up
Encore:
Neighborhood #3 (Power Out)
Rebellion (Lies)
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As fotos, da autoria de João Padinha, são do concerto de 22 de Setembro.
Promotora: Everything is New
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