O colapso da cultura tradicional do Japão deu-se a 15 de Agosto de 1945, aquando do anúncio da rendição do país do Sol Nascente. No entanto, há quem defenda que foi precisamente no final da Segunda Guerra Mundial que a tradição nipónica “foi despertada e reafirmou os seus direitos”. Seja como for, o certo é que os esforços a favor da revitalização dos antigos costumes japoneses tiveram início no pós-guerra. O porta-estandarte deste movimento foi Yukio Mishima, autor de “O Templo Dourado” (Livros do Brasil, 2020 – reedição).
O livro conta a história sombria de Mizoguchi, um rapazinho confrangido pela gaguez e oprimido pela solidão. No âmago da sua existência (e no eixo da narrativa) encontra-se o templo Rokuon-ji, “uma estrutura delicada, soturna e cheia de dignidade” cujos alicerces carregam o peso de um era que já lá vai. Possuído pela beleza do templo e pelos valores que este representa, Mizoguchi esforça-se para se libertar do domínio absoluto que aquele monumento exerce sobre a sua vida.
Na literatura de Yukio Mishima tudo é simbólico, inclusive os elementos naturais omnipresentes na sua bibliografia. Os cenários que o escritor descreve em “O Templo Dourado” estão repletos de árvores centenárias de folhas cintilantes, reflexos de água e flores estivais. Também não faltam cumes montanhosos, magnólias e, como não podia deixar de ser, o conspícuo sol nascente. Porém, este livro não é só paisagem. Mishima discute política, arte, sexualidade e concilia a elegância das palavras com a solenidade estética que normalmente associamos ao Japão antigo.
Yukio Mishima, pseudónimo de Kimitake Hiraoka, é celebrado como um dos mais talentosos autores japoneses do século XX. Durante a sua curta vida publicou dezenas de romances, ensaios, tragédias e contos. Não obstante os seus dotes literários, foi talvez o seu carácter revolucionário e estilo provocador que valeram ao autor de “O Templo Dourado” a fama internacional e as várias nomeações para o Nobel da Literatura. Imperialista e ultra-patriótico, Mishima transformou-se num ícone político e literário precisamente numa época em que a cultura nipónica se diluía no oceano dos valores ocidentais. Em 1970, após um golpe de estado fracassado, suicidou-se em conformidade com o código de honra dos seus antepassados samurai, praticando o ritual seppuku, também conhecido como hara-kiri.
Tal como o protagonista do livro, o autor de “O Templo Dourado” viveu, após a Guerra do Pacífico, entre dois países em conflito: o Japão arcaico, dos templos budistas e pinturas de Hokusai, e o Japão moderno, vergado ao peso do dinheiro. Tendo o materialismo levado a melhor sobre a tradição, a cultura ancestral japonesa, assim como o templo que Mishima celebrizou, encontravam-se à beira da ruína. De facto, em 1950, um incêndio suspendeu a beleza do Templo Dourado, reconstruído poucos anos depois. Na década de 80, durante o processo de restauro, o templo recebeu novos acabamentos em folha de ouro, substancialmente mais extensos e espessos que os originais — foi uma questão simbólica, dizem os especialistas. Yukio Mishima teria ficado orgulhoso.
Sem Comentários