Quando ‘Little Boy’ chegou a Hiroshima, roubando a vida de 200.000 pessoas, esta criança sobreviveu. Deformada fisicamente e transtornada emocionalmente para além de reparo, absolutamente sozinha numa cidade irreconhecível, H adopta o nome da bomba do final da Segunda Guerra Mundial. Tudo na sua vida começa ali, naquele momento. Tudo lá vai dar e tudo lá termina. Ao narrar a sua vida e as décadas que se seguiram à explosão, esta personagem envolve-nos naquela que é a busca da sua identidade e a compreensão do Eu, ao mesmo tempo que perfilha como sua a mudança trágica, repentina e incontornável trazida pela bomba.
Em “Yoro” (Elsinore, 2016), Marina Perezagua deixa-se levar pela imaginação e cria uma narrativa redonda. Desenha um ciclo que se fecha, permitindo que o leitor termine a leitura exactamente onde começou, com o proveito de ter conseguido terminar um puzzle que, na perspectiva da protagonista, demorou décadas a resolver. Tudo se liga, não há nada por explicar.
Naquele que é um cenário sufocador, terrífico e claustrofóbico – como pode ser a realidade e o passado -, encontra-se a vida de uma criança que se torna mulher/homem, que pretende libertar-se das convenções sociais e das consequências políticas. Esta pessoa que perde a sua identidade sexual, sobretudo quando já não tinha nenhuma [socialmente] por ter nascido hermafrodita, acaba por encontrar o amor e, assim, a paz e a tranquilidade na idade adulta. Mas, porque nada é estanque, foi precisamente por ter encontrado a sua alma gémea que H embarca numa viagem ainda mais intensa na busca de alguém que não lhe pertence e que, ainda assim, toma como sua de uma forma intensa, dolorosa.
Encontramos nesta história várias camadas de intenções e significados, que se cruzam e unem como se estivessem sobrepostos com papel vegetal: a procura da identidade, o desejo sofrido de procriação, a falta de um círculo familiar, a solidão na dor e na incompreensão física, anatómica e sexual, a falta de enquadramento na sociedade, a necessidade de conforto.
Este é um livro de sofrimento, sim, e este não nos é poupado: os registos históricos rigorosos, a exposição de uma pessoa a nu deixando visível o que lhe é mais íntimo, o amor e a perda, a busca pelo inexplicável e a aceitação do que é inaceitável. Mas este é também um livro de descoberta, de esperança e de resolução.
“Após o lançamento, o Enola Gay iniciou a manobra de escape, dando uma volta de 155 graus para Noroeste. A tripulação pôs os óculos escuros enquanto esperava o impacto da onda expansiva, que os alcançou um minuto depois, quando já estavam a nova milhas de distância.
Para mim, os dados foram muito menos preciso. Não sabia quanto tempo estivera inconsciente, nem quando saíra da escola. Lembrava-me de que os relógios que ia vendo estavam todos parados na mesma hora: 8h16. Mas não conseguia perceber como encontrara o hospital. Talvez alguém que eu também não recordava me tivesse levado. As semanas seguintes passei amontoada com outros feridos, também são imprecisas. Mais tarde, soube-se que, naqueles primeiros dias, havia apenas um médico para cada três mil vítimas. Embora, na altura, não o soubesse, tinha queimaduras em 70% do corpo. Alguns dias depois, os meus olhos colaram-se. Não conseguia abri-los. Pensei que tinha ficado cega. Não havia medicamentos, nem remédios para as dores, e estas eram atrozes. O único remédio que me davam era a mudança de posição. De vez em quando, alguém chegava e movia-me. Mas as dores eram tão intensas que, quando me viravam, eu não sabia se me punham de barriga para cima ou para baixo. Todo o corpo me ardia por todo o lado e nada podia aumentar a minha dor; por isso, o peito, o ventre, os joelhos, eram a mesma chapa ardente que as costas, as nádegas, a parte posterior das pernas. Sentia que havia perdido o meu relevo, que, empurradas pela dor, a minha parte da frente e a minha parte de trás se tinham juntado até fazerem de mim uma chapa plana de incandescência uniforme. Soube que começara a recuperar no primeiro dia em que senti a humidade da minha urina. Então, fui capaz de deduzir qual era a minha posição. Se a urina escorria para baixo, eu estava de barriga para cima. Se saía para fazer directamente uma poça, estava de barriga para baixo. Quando me limparam os olhos, consegui abri-los e, quando a dor diminuiu o suficiente para me permitir fazer alguns movimentos, ergui a cabeça e vi-me toda em carne viva, descobrindo que, embora conservasse as formas em todas as minhas extremidades, havia uma massa disforme e irreconhecível que ia do meu baixo-ventre até às virilhas. O inchaço era tão grande que, apesar de, naquele momento, não poder ter a certeza, tudo parecia indicar que a sanha da bomba havia arremetido principalmente contra o meu sexo.”
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