Durante os tempos de escola, poucos terão tido a sorte de apanhar na sala de aula um bom contador de histórias, que fizesse da disciplina de História pouco mais do que um despejar de datas e factos chatos que quase conseguiam que os manuais exalassem o cheiro da naftalina. Hilary Mantel não é professora de História – na verdade, graduou-se em Jurisprudência -, mas sabe contar uma boa história como poucos. Não é à toa que, dos três livros que compõem a trilogia dedicada a Thomas Cromwell, dois tenham sido prendados com o Man Booker Prize, numa viagem pela História Inglesa e Mundial onde cabem, além de Cromwell, Henry VIII, Anne Boleyn, Thomas More, Jane Seymor e outras figuras políticas e reais de uma Inglaterra regida pela dinastia Tudor.
“Wolf Hall” (Editorial Presença, 2020), o primeiro livro da série, transporta-nos até ao ano de 1520. Henry VIII ocupa o trono, casado com Catarina há dezoito anos, a qual não lhe deu qualquer herdeiro. Henry pretende divorciar-se de Catarina e casar-se com Anne Boleyn, nem que para isso tenha de enfrentar o Papa e toda a máquina cristã. Encarregue dos intento de de Henry está o todo-poderoso cardeal Wosley, que conta com o zeloso funcionário e rapaz de confiança Thomas Cromwell, alguém que viverá uma história parecida com a da Carochinha.
Thomas Cromwell é filho de um ferreiro cruel, um tipo violento, burlão e mau como as cobras. Um dia, decide fugir de casa e de uma vida sem perspectivas, em busca de uma batalha que possa vencer. No regresso desta introspecção militar, Cromwell irá iniciar um percurso que o tornará, esquema a esquema, numa das mais importantes figuras do reinado de Henry VIII, um político genial, intimidante e sedutor – por esta ordem de importância.
A escrita de Hilary Mantel é vertiginosa, alternando a voz da narrativa, intercalando os parágrafos curtos e certeiros com outros que se vão subindo como uma montanha, sempre com o poder encantatório de prender o leitor a uma história e à História, transformando estas personagens de há séculos em figuras vivas de um romance imperdível.
Para além de assistirmos à lenta mas meticulosa ascensão de Cromwell, conhecemos a posição da igreja perante casamentos e bastardos, sentimos a admiração de Cromwell por Catarina, olhamos o retrato da decadência a partir da história oculta da Grã-Bretanha, fechamos a porta à Peste, recitamos vezes sem conta o lema pelo qual se parecem mover os Boley – “as outras pessoas são para usar e deitar fora” -, assistimos impávidos à intolerância e à tortura imposta em nome da religião católica e assistimos, da primeira fila, à ascensão e queda de Thomas More, leal até ao fim a uma ideia (mesmo que errada ou adulterada), alguém com quem Cromwell teve uma rivalidade sempre acesa até ao fim da linha.
Para que o leitor não se perca no meio de tantas casas, títulos e honrarias, está disponível, no início do livro, uma galeria de personagens e também a árvore genealógica dos Tudor e dos pretendentes à casa de York, com ramos que parecem nunca mais acabar. Depois de terminadas estas seiscentas e poucas páginas, o mais provável será entrar numa livraria e levar para casa “O Livro Negro”, o livro do meio desta trilogia.
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