“Até aquela terça feira o medo era para mim uma abstração. (…)
Só quero estar livre para concluir minha travessia, eu disse a Diana. O luto do pedaço de mim que se perdeu…”
“Vista Chinesa” (Elsinore, 2021) é um relato duro mas cirurgicamente detalhado, um poderoso testemunho de uma batalha individual pela superação após um ataque que revela raízes profundas e abrangentes. Raízes lançadas pela guerra ancestral que é a violação das mulheres. Uma violência intemporal e sem fim à vista, uma (quase) herança espiritual e energética que atormenta todas e que, aqui, são unidas pelo fantasma que as condena, tanto psicológica como fisicamente, pois estar viva não é igual a sentir-se viva. Este relato é precisamente sobre essa luta – e sobre tanto mais.
Tatiana Salem Levy narra, com extrema concisão e numa linguagem visceral, tanto o episódio da violação como memórias recentes, associadas ao trauma e à luta íntima que é a vivência pessoal, e em família, após a violação. O fio narrativo é emaranhado e por camadas. Camadas de dor que vão solidificando e a que correspondem, uma a uma, etapas de luto.
A narrativa é intensa e coloca o leitor à beira do precipício, percebendo-se que a autora quer manter a objectiva bem focada naquele episódio, com flashes bem vívidos mas logo esbatidos pela dor, a humilhação e o medo. E é no meio desse caos e de uma euforia transtornante, entre a violência do ataque e a exasperação com a investigação policial, que se revelam todas as preocupações.
“Lembro de ter me perguntado se era por estar no meu lugar ou no lugar dela, uma dor inalcançável, a impossibilidade de um sofrimento físico, palpável, a lacuna que nos separava. Eu veria minha mãe emagrecer nos dias seguintes, mas ela nunca iria conhecer no corpo a agrura que eu havia experimentado, e não deve haver aflição pior que o desconhecimento tangível da dor de um filho.”
Entre fragmentos da memória surgem as expectativas com o futuro, num combate diário entre a expiação do mal e o amor pela família, o emprego, os filhos e o viver do dia-a-dia, enquanto aquela mulher se reconstrói por si mesma. Faltam-lhe, no entanto, as palavras para nomear o que lhe aconteceu. Daí este quase-testamento, atormentado pela dúvida, deixado aos filhos: saberão eles? Eles que foram carregados dentro dela.
“(…) ninguém sabe, nem eu sei ao certo, é tão difícil saber (…) meus filhos quando estavam na minha barriga sentiram um corpo inteiro ou um corpo fraturado, vocês são duas crianças lindas, perfeitas, mas por dentro serão inteiros ou, por terem recebido alimento e energia de um corpo rachado, também carregam uma alma rachada.”
Mesmo que seja uma herança hipotética, ela precisa de se apaziguar e matar o fantasma da violação que paira sobre todas as mulheres e, pela palavra, há uma superação mais concreta. Tal como redescobrir-se sexualmente, daí a própria gravidez ser também analisada como algo visceral e ancestral. E, aí, novamente a dor: a dor primitiva e o grito selvagem.
Sem dúvida que o fio condutor é a dor. Uma dor partilhada entre mulheres, visível no poder que tem o relato na primeira pessoa, revelando a capacidade de Tatiana Salem Levy em se apoderar de um episódio real, mesmo que exterior ao seu corpo.
Outra preocupação deste livro é denunciar a dificuldade de um tratamento digno e sem histrionismos, seja em ambiente hospitalar ou policial e, neste caso, assiste-se a uma condução desajeitada de toda a trajectória da investigação, que cede à pressão de ter um culpado. Não o verdadeiro, mas apenas um que satisfaça as estatísticas e os resultados da própria polícia. Algo que espelha as preocupações sociais e políticas com um Rio de Janeiro em convulsão, com registos de níveis de violência históricos e persistentes. Um livro intenso e completo, que oferece ao leitor vários pontos de vista.
Sem Comentários