Poucos galardoados com o Nobel da Literatura eram tão pouco conhecidos em Portugal como Abdulrazak Gurnah, em 2021. Ao desconhecimento inicial seguiu-se a atenção do público em geral, procurando compreender as origens e vida do laureado, as suas influências passadas e inspirações actuais, matéria que hoje se encontra tratada numa vasta revista de imprensa, destacando-se o facto de ser o quarto Nobel da Literatura negro em 120 anos e o primeiro em mais de três décadas, além do primeiro tanzaniano de sempre.
Abdulrazak Gurnah nasceu (em 1948) e cresceu em Zanzibar, ilha que no final do séc. XIX era um protectorado britânico, se tornou independente em 1963 e, no ano seguinte, se uniu ao Tanganica para formar a Tanzânia. Após a libertação pacífica do domínio colonial britânico, Zanzibar passou por uma revolução que levou à opressão, perseguição e ocorrência de massacres. Aos 18 anos, Abdulrazak Gurnah foi um dos milhares que tiveram de fugir, escolhendo como destino a Inglaterra para escapar às perseguições de que a sua comunidade foi alvo. Até recentemente se ter reformado, foi professor de Literaturas Inglesas e Pós-coloniais na Universidade de Kent, na Cantuária, tendo começado a escrever quando tinha 21 anos.
A Academia Sueca distinguiu-o com o galardão “pela sua perceção descomprometida e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no espaço entre culturas e continentes“, salientando a sua dedicação à verdade e a sua aversão à simplificação. O seu trabalho revela uma África Oriental culturalmente diversa e pouco conhecida. Na sua obra, fala da experiência da conquista e do poder colonial exercido sobre pessoas que nada sabiam e tiveram de submeter-se. O tema da perturbação dos refugiados atravessa todo o seu trabalho, desenvolvido no exílio mas em profunda relação com o lugar que abandonou, com a memória pessoal que preservou e a bagagem histórica que investigou e procurou preservar na sua narrativa. Ultrapassado o vazio inicial, a sua obra está a ser editada no nosso país. “Vidas Seguintes” (Cavalo de Ferro, 2022) foi o primeiro, prevendo-se ainda para este ano que a mesma editora faça sair mais dois títulos.
“Vidas seguintes” é um romance que volta ao passado e se preocupa com a situação humana real. Nele, nos finais do século XIX, a pobreza e a ausência de esperança dominam em muito a memória dos personagens, numa porta aberta para entender o terramoto social que a colonização provocou na África Oriental. Abdulrazak Gurnah explora a colonização alemã em múltiplas perspectivas, fazendo um dos seus personagens ingressar no exército alemão e defender essa colonização. Antes desse virar de página, enquadra o leitor no que é (sobre)viver naquela parte do mundo. A descrição vai acontecendo com personagens que, desde jovens, tomam contacto com as atrocidades coloniais e a complexidade das relações sociais. A narrativa enriquece-se com bifurcações inesperadas – jovens nativos que se aliam aos colonialistas, vidas de sobrevivência nos meandros da guerra e a singela beleza do amor em ambientes hostis – um retrato impressionante daquilo a que gente deserdada de dignidade é confrontada.
Um romance que se destaca pela capacidade do autor de retratar o actual tema dos refugiados, em que milhões de cidadãos fogem das atrocidades políticas e bélicas verificadas em vários continentes. O autor descreve como estes acontecimentos afectam a vida das pessoas, tanto das que participam directamente como das que os vivem na periferia, sejam soldados ou apenas gente comum a tentar continuar com a sua vida. Nessa perspectiva, “Vidas Seguintes” é um romance sobre como estas pessoas lidaram com isso e como se reconstruíram – ou não -, da imensa distância que percorreram, não apenas em termos de quilómetros mas também de cultura, de língua, por vezes de religião, de visão do mundo. São movimentos que se revelam tremendos, enormes, e que escondem muitos ângulos e perspectivas. Sobre como as pessoas pensam na vida que seguiram e se lembram do que deixaram para trás.
Tocando os temas do colonialismo e dos refugiados, Abdulrazak Gurnah concede-nos uma belíssima narrativa sobre o amor e a tenacidade: “O pouco que ele lhe podia oferecer em troca: um trabalho que não era seguro, uma casa que era um quarto emprestado e que facilmente lhe podia ser retirado se as intenções dele fossem encaradas como uma ofensa, uma cama que era um busati no chão. O seu corpo estava danificado. Não podia oferecer um passado de alegria nem esperança no futuro, apenas uma triste história de servilismo para acrescentar à dela”. Ouvi-lo, nas muitas entrevistas que deu depois de revelada a sua genialidade, revela-se elucidativo e profundamente inspirador.
2 Commentários
Já agora, era de bom tom e da mais elementar justiça mencionar o tradutor, uma vez que o Sr. Gurnah não escreve em português.
Obrigado pelo reparo, aqui fica o nome da tradutora: Eugénia Antunes.