“A conversão de Ramon deu muito trabalho a Nosso Senhor. Ou porque fosse avesso a toda essa contrição e a toda a penitência, ou porque o Crucificado não fizesse acompanhar as suas aparições do necessário estado de graça, ou de exibições vistosas, o certo é que, como se diz na ‘Vida Coetânea’, depois da visão terrífica, Ramon continuou a fazer a sua vida.”
Pegando na ideia de Luís Moura, num artigo dedicado à escritora Luísa Costa Gomes para a Revista Convergência Lusíada, a um autor modernista “pertence-lhe uma linguagem própria, um ritmo frásico inconfundível”, identificável pelos leitores mais atentos. Luís Moura não coloca a escritora nesta definição, mas não hesita em afirmar que existe uma marca autoral na obra de Luísa Costa Gomes. “Vida de Ramon” (Dom Quixote, 2016 – reedição), originalmente publicado em 1991, é uma das provas da escrita única desta autora, com a reconstrução e relato da vida de Ramon Llull, conhecido como o “Doutor Iluminado, o Fantástico, o Louco de Amor Divino”.
Não há como não ter atenção à profunda investigação que foi necessário efectuar para escrever este “Vida de Ramon”: Llull nasceu em Palma, capital do Reino de Maiorca formado por Jaime I de Aragão, O Conquistador. Retirou-a aos mouros com força e violência militar “numa expedição rápida, seguida de assalto e massacre”. Fazia o peito às batalhas, nas palavras da autora, e acreditava sem sombra de dúvida no apoio divino às suas batalhas (“… a sua guerra era apoiada do Céu e Deus em pessoa empurrava por trás”).
Após o sucesso da conquista de Maiorca, lado a lado com os catalães, devastou o Reino de Valencia para o obter e, mais tarde, conseguiu conquistar Murcia, após de uma tentativa falhada em avassalar o Sul de França. É este o homem que inspira o jovem Ramon Llull, modelando-lhe os ideais já tão idênticos (“…mistura de idealismo e do realismo mais prosaico; e depois a sensibilidade muito susceptível, a independência de espírito, o amor próprio do eleito inquestionável”), com o dever de lhe ensinar as artes da guerra, da caça, da administração e, também, os princípios de logística, diplomacia e tanto mais.
Raimundo ficou conhecido pelas canções que escrevia para conquistar o coração das damas e foi num desses momentos, em que se prepara para escrever sentado à mesa do seu quarto, que vê Cristo Cruxificado “que o observa de uma aura amarelada, sem amizade”. Não conseguiu olhar com a mesma frieza e indiferença. Horrorizado com a visão que estava a ter, colocou-se na cama e “via-lhe o corpo coberto de chagas coroado” com gotas de sangue. Mas, ao que para muitos bastaria uma única aparição para se converterem, a Llull foi necessário que Cristo lhe aparecesse mais cinco vezes no espaço de quinze dias. Como resposta a estes acontecimentos, coloca os seguintes objectivos para a sua vida: alcançar um conhecimento profundo, sofrer ao serviço de Cristo, escrever “o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis” e fundar uma escola de idiomas para atingir os objectivos a que se propunha.
Em tantas mais linhas se podia contar escrever sobre a vida e os acontecimentos à volta de Llull, uma personalidade gravada nas páginas da História – a “Vida Coetânea”, incluída no final deste livro, é o único registo conhecido até ao momento sobre a vida do protagonista – e tão desconhecida para a grande maioria do público português e fundamental para o Cristianismo. Llull revelou um vasto conhecimento ao longo da sua vida e teve, como uma das suas ambições, fazer chegar tudo o que aprendeu a todas as pessoas, uma vez que escreveu as suas obras em latim, o idioma do público intelectual da época, mas também em árabe e catalão.
Em “A Vida de Ramon” sente-se o fascínio da autora por este visionário, tão obscuro em momentos chave para o leitor. Balança-se a realidade e a ficção, na reticência de quem lê em acreditar na veracidade de tudo o que é narrado. Uma obra que pede leitores atentos, plenos da realidade dos factos apresentados e apreciadores de boa literatura: é essa a marca certa e sabida em qualquer livro de Luísa Costa Gomes.
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