“Viagem aos Confins da Cidade – A Metrópole e as Artes no Outono Pós-Moderno” (Antígona, 2016) é uma reflexão, em modo simultaneamente académico e acessível, acerca da Cidade e dos reflexos desta estrutura na sociedade contemporânea (e vice-versa), entre 1972 e 2001.
O que poderia limitar-se a uma mera explanação teorética restrita, ganha contornos mais extensos e atractivos, enriquecida pela relação dialéctica que o autor habilmente descreve entre a Arte (com enfoque no cinema, mas com múltiplas referências à pintura, escultura, instalações, arte cívica, Street Art, Social Art…), a ideologia (o capitalismo, o socialismo, o situacionismo, o neo-situacionismo) e a arquitectura.
A moldura temporal referida no título, aparentemente aleatória num primeiro contacto, não é de todo despicienda e apesar de 2001 parecer uma data já longínqua, não belisca a relevância e urgência do texto.
O ano de 1972 é vulgarmente referido para localizar o fim do modernismo racional, funcional e eficiente, com a demolição do bairro de Pruitt-Igoe em St. Louis, Missouri, símbolo do fracasso do funcionalismo arquitectónico, idealizado por Le Corbusier e difundido globalmente como a solução mais indicada para a organização da existência humana em ambiente urbano.
2001 é o ano da queda das Torres Gémeas em Nova Iorque, com todo o seu simbolismo de crise sociológica e ideológica, fim de uma certa ingenuidade que o triunfo do capitalismo conferira durante décadas às sociedades ocidentais e a perda irrecuperável de uma falsa sensação de invulnerabilidade das urbes pós-modernas, baseadas num cariz fortemente securitário e utilitário (1), em que o espaço urbano, pesadamente vigiado e controlado, ainda mantinha (e mantém) por propósito fundamental a tranquila e eficiente realização das funções essenciais da vida: “produzir, repousar-consumir, habitar e circular de forma rápida (as quatro categorias da Carta de Atenas, formulada por Le Corbusier e outros em 1933)” (pág. 14).
O lazer, a criatividade, a imaginação e a cultura são relegados para os espaços abandonados ou literalmente entre os grandes edifícios que esmagam o horizonte visual, espaços esquecidos, ou heterotópicos, frequentemente resgatados por projectos artísticos e de intervenção cívica, que procuram reaproximar os cidadãos da cidade, interagindo com ela, conferindo-lhe uma dinâmica que supere a espuma dos dias e suscite o questionamento, a curiosidade e uma mais apurada cosnciencialização face ao meio envolvente.
Coincidência, ou talvez não, ambos os projectos arquitectónicos tiveram como autor o arquitecto Minoru Yamasaki e a conclusão da construção das Torres deu-se poucos meses após a demolição do bairro.
Os traços da urbe do Outono do pós-modernismo, para que nos remete o título da obra, são ainda os mesmos que hoje testemunhamos em qualquer local do Mundo, com raríssimas excepções. A explicação é simples e só na aparência simplista: o criador é exactamente o mesmo, assim como a filosofia que, na generalidade dos casos, preside à sua criação.
As variáveis verdadeiramente relevantes são a nacionalidade e a visibilidade de cada projecto, quer pelo contexto em que surgem, quer pela relevância dos nomes envolvidos na sua concepção e conclusão.
A tese de Leonardo Lippolis é expressa pelo próprio logo nas páginas 18 e 19:
“(…)a metrópole ocidental é cada vez mais vista como efeito, mas também como causa, de uma distopia em curso e de apocalipse no futuro próximo. Apresenta-se no imaginário colectivo como o triste cenário em que se consuma aquele Outono de uma civilização moribunda que Johan Huizinga já divisara (…)” “(…)o pós-moderno liquidou rapidamente a utopia como encarnação da vontade racionalizante do moderno (…) no horizonte dos arquitectos que ainda se consideram críticos a respeito dos destinos do mundo, prevalece um estado de espírito próximo da condescendência e um projecto que não vai além da defesa de uma liberdade marginal”. “(…) a extinção de um projecto de transformação radical do mundo (…) permite que essa análise seja recuperada seja por quem for, (…) incluindo os de carácter conservador de quem, para atacar a sociedade da abundância, lhe opõe, não uma ideia diferente de felicidade, mas medidas de moralização e de proibição.”
Quanto à Arte, outro vector da análise, a perspectiva é igualmente pessimista (ou talvez realista), com o autor a dissecar alguns projectos conceptualmente desafiantes do status quo da época, mas que, na sua generalidade, foram rapidamente apropriados e massificados pela cultura dominante.
“A arte (…) limita-se a procurar vazios parcelas descarnadas de territórios onde possa insinuar-se e continuar a pensar que é possível alguma forma de liberdade. (…) a melancolia da arte projecta espaços outros (as «heterotopias» de Michel Foucault) e tenta «inventar o quotidiano» (Michel de Certeau), sem voltar a ter a ousadia de um pensamento revolucionário acerca dos destinos do mundo.”
O isolamento a que estamos votados deriva de forma indelével da “anulação da experiência do espaço físico da cidade”, remetendo-nos aos limites físicos da nossa habitação e condicionando a vivência do mundo exterior quase exclusivamente à mediação da omnipresente e viciante tecnologia, “através da Internet e da televisão, as verdadeiras paisagens do nosso imaginário quotidiano” (pág. 72).
O cinema e a literatura, em particular nos géneros da ficção científica e distopia, são dois outros instrumentos de que Lipollis se serve para dar maior lastro à sua análise, confirmando e estendendo os seus pressupostos iniciais e buscando, nas obras que refere, uma percepção mais popular e culturalmente propagada da sua perspectiva apocalíptico-pessimista do capitalismo e da arquitectura que, simultaneamente, o reflectiu e o moldou, com uma miríade de referências que vão desde Ballard(2) a Cronenberg, passando por Orwell (“1984”), Burgess (“Laranja Mecânica”), John Carpenter, entre outros.
O cenário de muitas das obras citadas (e da época de 1960 e início da década seguinte) aponta consistentemente para uma “sociedade doente” (pág.38) e um “mundo desumanizado, angustiante e absurdo“, onde “um forte mal estar social” é evidente. A criminalidade, retratada como endémica, desenrola-se n´”uma paisagem suburbana decrépita, onde o superpovoamento coincide com o isolamento social“, “paisagens a que a nossa sensibilidade está funestamente habituada“, o que não as torna menos inquietantes.
A conclusão a que Lippolis nos conduz pacientemente, espera-nos logo nas páginas introdutórias do livro, sem surpresas nem falsas expectativas:
“O triste destino do mundo contemporâneo parece estar fatalmente contido na dialéctica entre a descrição de uma distopia catastrófica já em curso, levada a cabo por intelectuais, filósofos, sociólogos urbanos, romancistas e cineastas e a vontade dos artistas de encontrarem um triste refúgio em heterotopias urbanas.”
O balanço final deste (des)equilíbrio é francamente aterrador, embora temperado com alguns projectos com sucesso desigual (3), mas geradores de mudanças efectivas nas comunidades que os albergaram, que poderão ser tidos em conta como possíveis soluções para evitar a anunciada desintegração da cidade, tirando “partido de lugares marginais da cidade para criar espaços de alteridade, livres do controlo invasivo da estrutura económica e funcional”(pág. 140).
A bola passa para as mãos do leitor, mais informado depois desta leitura, e a quem cabe, em última instância, a responsabilidade de procurar na sua esfera de influência, por mais reduzida que possa parecer, agir por forma a contrariar a indesmentível e aparentemente irreversível tendência aqui retratada.
É um aviso, mas também um estímulo à intervenção consciente no meio que diariamente fazemos também nosso, pelo mero facto de existirmos hoje, aqui, agora.
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(1) Por exemplo, o zoning na cidade de Los Angeles e no Burning Man Festival, que o autor descreve com detalhe.
(2) A propósito da fantástica obra de J. G. Ballard, infelizmente pouco divulgada e traduzida em Portugal, o novo filme de Ben Whitley “High-Rise”, baseado no livro homónimo de Ballard e também escalpelizado nas páginas de “Viagem aos Confins…”, é extremamente recomendável e um sério aviso quanto aos perigos de uma cidade cada vez mais desligada das verdadeiras necessidades de todos e cada um dos seus cidadãos, para além das aparências e da futilidade dos confortos temporários.
(3) Os “community gardens” e os “adventure playgrounds”, por exemplo.
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