Será possível conhecer uma nação tão complexa como o Brasil pela sua literatura? Isabel Lucas, jornalista e crítica literária, percorreu o país durante cerca de um ano em busca de uma resposta, desde Maio de 2019 até quando a pandemia de Covid-19 permitiu, usando como guia uma lista de autores canónicos, e o resultado é “Viagem ao País do Futuro” (Companhia das Letras, 2021).
O início e o fim do périplo têm por cenário dois sertões radicalmente diferentes. Começamos em Canudos, uma terra pobre no interior da Bahia, que no final do século XIX assistiu aos confrontos – narrados por Euclides da Cunha em “Os Sertões” – entre o exército e uma comunidade centrada numa figura messiânica que preconizava um modelo de sociedade diferente do defendido pela recém-implementada república. Terminamos nas margens do Rio São Francisco, que atravessa o universo semi-mitológico de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, cuja linguagem flui tão torrencialmente como as águas.
Pelo meio, encontramos mais dez capítulos, cada um centrado num espaço e num autor, embora sejam frequentemente invocados outros, vivos e mortos. Alguns dos vivos são elusivos, como Dalton Trevisan, vencedor do Prémio Camões em 2012, conhecido como “O Vampiro de Curitiba” – título de um dos seus livros mais famosos – pela forma como suga as histórias do quotidiano da cidade. Outros dispõem-se a receber a viajante, como Raduan Nassar, residente no bairro boémio de São Paulo e vencedor do Prémio Camões em 2016, que decidiu interromper a produção literária em 1984, por razões nunca explicitadas. Milton Hatoum guia-a pela decadência cosmopolita de Manaus e os filhos de Erico Veríssimo, em Porto Alegre, falam-lhe acerca do pai. A solicitude encontra-se até entre os mais desfavorecidos, que podiam ser personagens de Graciliano Ramos, autor cujas obras expõem a impossibilidade de comunicação entre aqueles que receberam educação e os excluídos, a quem até faltam palavras. E, numa aldeia guarani, índios defendem a importância de publicar livros, usando a escrita para valorizar os indígenas e alertar para os seus problemas, tal como fez Mário de Andrade na sua linguagem de fronteira entre culturas.
São incontornáveis os nomes de Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado e Clarice Lispector, mas um dos aspectos que vale a pena destacar nesta obra é a vontade que desperta de ler autores que desconhecíamos. Outros pontos fortíssimos são a riqueza das descrições, a destreza com que a História é associada à literatura para ajudar a compreender o Brasil, e a representação polifónica de um presente povoado por gente que parece saída de um romance.
O sub-título deste livro invoca outro: “Brasil, País do Futuro”, do austríaco Stefan Zweig, que encontrou no Rio de Janeiro refúgio da Segunda Guerra Mundial, tendo então registado a impressão de, à chegada, ter “lançado um olhar para o futuro do nosso mundo”. Não é claro se o futuro de um território marcado por contrastes sociais, económicos, geográficos e culturais tão acentuados como os aqui descritos terá mais de utópico ou de distópico, mas podemos crer que haverá sempre literatura para o iluminar.
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Nota: Recebemos também a edição brasileira da CEPE Editora, a primeira de “Viagem ao País do Futuro” a ser publicada, que é um verdadeiro mimo gráfico. Seguem-se as capas de ambas as edições.
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