Caetano Veloso é um cantor-escritor (tem onze livros publicados), músico e produtor brasileiro de grande renome. Com uma carreira que ultrapassa cinco décadas, Caetano construiu uma obra musical marcada pela releitura e renovação da música popular brasileira que transcendeu, com enorme eco, as fronteiras do seu país, fruto também do seu assumido activismo político e do seu espírito livre e humanista.
“Verdade Tropical” (Companhia das Letras, 2017 – edição comemorativa de 20 anos) é uma obra singular onde se mesclam o ensaio, a autobiografia, as memórias e as histórias vividas, num elegante texto escrito para atrair o leitor, embora por vezes este se possa sentir avassalado por tanta e tão diversificada informação.
Num primeiro plano, trata-se de uma autobiografia clássica, ou seja, o leitor partilha, de forma intimista, a infância, os pais e irmãos, os amigos célebres, a ascendência (movimento da Tropicália) e a queda (prisão e exílio em Londres) do autor. O tema do livro enfatiza também – e muito particularmente, pois é o tema central do livro – a música popular, através da interpretação da história do tropicalismo (o autor é pioneiro do movimento tropicalista da década de sessenta), relacionando-o com outras manifestações musicais significativas. Mas “Verdade Tropical” reflecte ainda, de modo extremamente próximo, sobre as questões que eclodiram nas décadas de 60 e 70, revelando um panorama da ditadura do Cinema Novo de Glauber Rocha, da presença dos Beatles e dos Rolling Stones, das drogas e do designado amor livre.
O autor escreve um capítulo novo, intitulado “Carmen Miranda não sabia sambar”, vinte anos após a primeira publicação em 1997 de “Verdade Tropical” – “escrito na flor dos meus 54 anos” –, onde apresenta o livro ao leitor e fala abertamente sobre as inseguranças ortográficas com a língua portuguesa, a identidade sexual, considerações raciais, as reconhecidas influências que sofreu por parte de Sartre, Lévi-Strauss e Proust, a americanização, a politica, a prisão, o exílio, a religião, as drogas ou os seus pares na diversidade cultural brasileira. Com absoluta franqueza e acutilante e permanente provocação, Caetano Veloso demonstra uma capacidade única e incomparável de emocionar e cativar o leitor com a palavra, nunca abdicando, porém, de sublinhar a sua própria verdade.
Caetano faz uma belíssima e irónica alusão sobre a conveniente descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral, em que “o acaso empurrou a frota cabralina para a costa brasileira” (após o tratado de Tordesilhas), passando pela análise do Brasil enquanto Nação, “país em que há maior desigualdade social e de renda do mundo”, fazendo emergir o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) como o mais nefasto, prepotente, injusto e manipulador período da história do país, com perigosa influência na sua cultura. Transversalmente demonstra também a extraordinária importância da arte e da música durante esse período, particularmente a música popular brasileira, que foi “virada do avesso” pelo movimento designado de tropicalismo, tornando a música “a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo, tantos insuspeitados amantes esta tem conquistado por meio da magia sonora da palavra cantada à moda brasileira”.
Considerando que a obra não é autobiográfica – ”embora eu não me negue a “contar-me” com alguma prodigalidade” -, Caetano Veloso dá um testemunho único e despretensioso sobre uma época histórica, partilha a história da sua vida (com particular incidência na vida da sua irmã Maria Bethânia) e retrata a história da música popular brasileira. O livro é escrito com fulgor e entusiasmo, com espontaneidade e proximidade, abrangendo episódios da vida dos grandes vultos da música popular brasileira, que o leitor português também se habituou a escutar e a conhecer – leitor esse que fica culturalmente enriquecido ao “entrar” no círculo das amizades pessoais e musicais de Caetano, como João Gilberto, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Roberto Carlos ou Maria Bethânia, entre outros.
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