“Havia o Portugal da simpatia e da bonomia, o país dos Antónios Silvas deste mundo, e um outro Portugal crispado, o Portugal da política, onde em lugar de sorrisos e boa-disposição havia tensão, ameaça e braços esticados.”
Amor e guerra, coragem e sonho, ilusão e desilusão, arrependimento e esperança, são algumas das forças sopradas pelo “Vento de Espanha” (Porto Editora, 2017), o mais recente romance histórico de João Pedro Marques. Neste novo livro, o autor leva-nos numa viagem até à década de 30 pelas mãos de Custódio Moreira, um camponês beirão que decide ir para Lisboa estudar, na esperança de mudar a sua vida, até aqui marcada por um “nunca acabar de lutos”. A sua história cruza-se com a de Lurdes Calafate, uma lisboeta da Mouraria que também procurava, subindo a pulso e com força de vontade, escapar da “miséria da sua condição”.
A partir desta história de amor, que acaba por se revelar atribulada face aos fantasmas que assombram o passado de Lurdes, o autor mergulha-nos nos tempos duros da Guerra Civil Espanhola. A debater-se interiormente com um desgosto amoroso, Custódio embarca na Legião Estrangeira para uma luta que não é a dele — ele, que nem se interessava por política.
“A verdade é que não percebia bem ao que ia. Apenas sabia que se tratava de enfrentar comunistas, republicanos e tudo o que se lhes aparentasse, e que estava no meio de gente que não dava qualquer valor à vida humana e que subira para aquelas camionetas com vontade de matar e disposta a morrer.”
Contrabalançando ficção e realidade, João Pedro Marques dá-nos uma visão completa do conflito — dessa “Espanha rasgada em dois” —, insere-nos no contexto político e faz-nos questionar e reflectir sobre as suas implicações. Comunismo e fascismo são apresentados como opostos em confronto, inserindo também a narrativa no contexto político mundial da altura através de personagens e uma linguagem que o autor mantém cativante do início ao fim. Pelo meio surgem-nos um tenente fascista para quem “!Viva la Muerte!” é um lema de vida, mas também um coronel soviético que se revela profundamente desiludido com os rumos da revolução bolchevique.
O papel da mulher na história é fascinante, não só através de Lurdes mas, também, de Maria del Carmen, uma madrilena de classe alta para quem os princípios da humanidade acabam por ser mais altos, numa época em que a violência impera. Mas é em Lurdes que se centram as atenções, inserindo-a o autor no grupo dos “milenaristas”, aqueles que “acham que o mundo de justiça e felicidade, o mundo onde todos serão iguais, é para ser construído aqui na Terra e não no céu. E já. Imediatamente”.
“Vento de Espanha” mostra-nos a guerra, mas também nos faz sonhar e ter esperança que a coragem e o amor sobrevivam e sejam a chave do progresso. Os amantes das letras vão encontrar aqui vários motivos para sorrir: uma personagem disposta a fazer todos os sacrifícios para estudar, ler, aprender e assim “subir a pulso” na vida, fugindo a “horizontes acanhados”; e outra que mantém uma biblioteca com leituras proibidas debaixo do soalho — “obras que falavam de coisas que ela, primeiro, começara a perceber com o coração e que, agora, queria perceber com a cabeça, com a inteligência”.
O papel da leitura e do conhecimento — que deixam “um lastro de inquietações sociais e políticas” na mente de Custódio —, adquire um papel de destaque, que funciona como uma lufada de ar fresco para o leitor. “Quanto mais lia e mais sabia, mais questionava aquele mundo onde estava metido até ao pescoço e mais difícil lhe era endurecer como os outros”.
Em contraponto com o provérbio que diz que “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”, este “Vento de Espanha”, soprado por João Pedro Marques, acaba a semear a esperança de que as pessoas escolham o melhor caminho num “mundo em profunda convulsão”.
1 Commentário
Olá Natacha Cunha,
Obrigado e parabéns por esta recensão crítica tão bem elaborada, tão atente, ao meu mais recente livro.
Já tinha notado as suas 4 estrelas no Goodreads :-).
Um beijinho