“Gostava de ter um poeta. Podemos comprar um?” É esta a questão com que praticamente começa o novo livro de Afonso Cruz, a que o pai da criança responde prontamente: “De que tamanho?” Ainda se pensou num artista, mas dizem que estes fazem muita porcaria – que o diga a senhora 5638,2, que “despende três a quatro horas por dia a limpar a sujidade que ele faz com as tintas naqueles objectos brancos.”
Em “Vamos comprar um poeta” (Caminho, 2016), os poetas são os novos animais de estimação, seres raros mas nem por isso apreciados que habitam num mundo onde a poesia – ou qualquer visão metafórica do mundo – já era. Há, neste mundo, uma vida que se mede em gramas, percentagens ou ângulos, e onde as conversas de café ou à mesa de jantar não passam de assuntos como a conjuntura externa, o aperto do cinto ou a consolidação orçamental.
Na loja havia poetas de toda a espécie, mas com pouco dinheiro era desde logo impossível levar um com óculos, de todos os mais caros. Acabou por ser escolhido “um ligeiramente marreco“, com “uma escoliose com uma curvatura oblonga. Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cinco nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço. Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas.”
Aos poucos, o poeta começa a fazer parte do quotidiano de uma família pouco alegre, e timidamente a poesia começa a ecoar dentro das paredes de casa. “Um poema pode-se encontrar dentro de qualquer coisa ou mesmo espalhado no chão“, lança o poeta que vive num vão de escadas com dois metros quadrados e meio. E que, regra geral, é posto de castigo.
Numa sociedade onde os nomes próprios são feitos de números e letras e onde tudo é patrocinado, a jovem narradora da história começa a deixar-se afectar pelas metáforas – ou, como lhes chamam aqui, mentiras – e adjectivos, abraçando aos poucos o pouco saudável inutilismo. Começou a sentir “uma espécie de vazio comercial ou, no mínimo, emocional. Estaria doente?”
Nesta história apontada ao extremo máximo – ou, se preferirem, ao coração – do materialismo, Afonso Cruz homenageia a poesia sem precisar de usar mais do que três ou quatro versos, mostrando que o mundo é um lugar bem mais bonito quando a poesia, a criatividade e a beleza fazem parte da vida de cada um, transformando, assim e para melhor, a vida dos que estão à volta.
Para o final está reservado um posfácio que, curiosamente – e por que não poeticamente -, foi o texto que Afonso Cruz leu na última edição das Correntes d’Escritas, muito tempo antes deste livro chegar às livrarias. Um posfácio que começa e acaba com poesia, assim como deveria acontecer com a existência humana: “Tenho milhas a percorrer antes de dormir.” Um grande Ámen poético a isto.
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