Se, numa situação de aperto, com uma arma encostada à têmpora ou um canivete suíço a ameaçar um furo na rótula, fôssemos obrigados a gritar o nome do bibliófilo mais apaixonado do planeta, talvez a resposta fosse dada de pronto e com sotaque sul-americano: Alberto Manguel.
Nascido em Buenos Aires (Argentina) no ano de 1948, Manguel cresceu em duas diferentes geografias – Telavive e Argentina -, tendo desde muito cedo desenvolvido uma relação apaixonada com os livros e a leitura. Aos 16 anos, quando trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, teve um pedido do mestre Jorge Luis Borges, já a caminho da cegueira profunda, para que lesse para ele em sua casa, algo que fez com gosto entre 1964 e 1968, ano em que se mudou para o continente europeu. Viveu em Espanha, França, Itália e Inglaterra, pagando as contas como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos sobre temas tão díspares como o fantástico ou a literatura erótica e, em nome próprio, tem sido ensaísta, romancista e autores de preciosidades como “Dicionário de Lugares Imaginários” – que recentemente conheceu um novo capítulo intitulado “Livro de Receitas dos Lugares Imaginários” -, “Uma História da Curiosidade”, “A Biblioteca à Noite”, “Embalando a Minha Biblioteca” ou o já clássico “Com Borges” – um livro de memórias afectivas, feito de vivências domésticas, conversas, leituras e releituras, reflexões e uma partilhada e renovada curiosidade pela vida e, sobretudo, pelos livros. Foi o director da Biblioteca Nacional da Argentina entre 2016 e 2018 e, pelo meio, recebeu o Prémio Formentor das Letras em 2017.
Desde há algum tempo, para gáudio de muito bom leitor e leitora nacionais, Alberto Manguel decidiu mudar-se para Lisboa. Cidade onde, depois de um convite de Fernando Medina – que contou com o dedo e visão de Bárbara Bulhosa -, irá dirigir o futuro Centro de Estudos da História da Leitura, que ficará localizado no Palacete dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes, na proximidade do Museu Nacional de Arte Antiga. Uma biblioteca pública que irá incluir os cerca de 40000 livros da biblioteca pessoal de Manguel que este doou à cidade de Lisboa, e que entre os membros do futuro Conselho Honorário terá escritores como Olga Tokarczuk, Salman Rushdie, Margaret Atwood, Chico Buarque ou Tolentino de Mendonça.
Com o selo da Tinta da China – anos depois de uma primeira edição com o selo da Editorial Presença, há muito esgotada – “Uma História da Leitura” (Tinta da China, 2020) é o livro ao qual Alberto Manguel dedicou sete anos de trabalho, e que foi da ideia inicial de um ensaio para um livro inteiro. Antes de dar o primeiro passo de uma viagem – devidamente ilustrada – que durará mais de seis mil anos, das tábuas de barro aos livros digitais e mais além, Alberto Manguel fala da lista de livros preferidos de uma pessoa como a sua autobiografia que, aplicada a um site de encontros, poderia bem servir para evitar relações trágicas ou conversas no mínimo embaraçosas.
Começando pela Última Página, onde diz ter aprendido a ler aos 4 e a escrever aos 7, Manguel recorda vários momentos e estados de alma da sua linha temporal: os anos em que leu para Borges; a decisão de viver entre livros; a importância do acaso e da circunstância; o poder e a magia cumulativa da leitura; a possibilidade de, ao contrário da curta viagem terrena, a literatura conter em si a possibilidade de retorno. Tudo para concluir que “uma sociedade pode existir – existem muitas – sem escrita, mas nenhuma sociedade existe sem leitura”.
Cada um dos capítulos, divididos em três grandes blocos, revela todo o jogo de cintura literário de Manguel, que nos mostra como a leitura pode ser a mais bela das obsessões: Actos de Leitura centra-se no acto a que chamamos de ler, explicando “por que alquimia se tornam essas letras palavras inteligíveis” e, recuando até Santo Agostinho, vendo nos olhos a “porta de entrada do mundo”; a propósito de Ambrósio, contemporâneo de Santo Agostinho, Os Leitores Silenciosos dizem, ao estilo de um provérbio literário, que “olhos que divagam pelas páginas, língua que descansa”, lembrando a estranheza de a leitura silenciosa apenas se ter tornado habitual no Ocidente no século X; quem preserva e transmite a memória? O livro ou o autor? Questões respondidas em O Livro da Memória, onde encontramos o repetente Santo Agostinho, Petrarca ou o Fahrenheit de Ray Bradbury; os cadernos de leitura, o predomínio do latim e o espírito inventivo de estudantes pobres, que sobreviviam em esquemas como vidências, furtos ou esmolas, marcam presença em Aprender a Ler, onde Manguel refere que “a aprendizagem da leitura representa uma espécie de iniciação, a saída ritualizada de um estado de dependência e de comunicação rudimentar” – e onde se faz, também a ponte da escola eclesiástica para os ideais humanistas, onde a leitura se torna aos poucos uma responsabilidade de cada leitor individual; A Primeira Página Ausente desvenda uma importante e reconfortante verdade literária: “nunca uma leitura pode ser definitiva”; Ler Imagens parte de um livro que, quem sabe, poderá ter inspirado Manguel a desenhar o seu Dicionário de Lugares Imaginários: o Codex Seraphinianus de Luigi Durden Serafini, uma enciclopédia visual sobre um mundo fictício escrita numa língua inexistente, ao estilo dos compêndios científicos medievais; em Ouvir Ler, para além de recuperarmos “o prazer quase esquecido de ouvir ler”, aprendemos que o charuto Montecristo foi assim chamado por o livro de Dumas ser o mais popular entre os operários das fábricas de charutos, que pagavam a leitores profissionais para lhes lerem jornais ou romances em voz alta; O Formato do Livro acompanha a revolução de Guttenberg, que permitiu a democratização na compra de livros – algo que explodiu mais tarde com a editora Penguin e os seus livros de bolso; a Leitura Privada faz-nos deitar na cama, território muito propício a policiais e a contos fantásticos; Metáforas da Leitura arrisca uma biografia de Whitman e da sua relação com a metáfora, Whitman que defendia que somos o que lemos e, também, que nenhuma leitura poderá ambicionar ser definitiva; Poderes do Leitor, o terceiro e último bloco, recua aos Inícios e à Babilónia, lugar onde começou a pré-história dos livros e no qual os escribas eram reis – pelo menos do conhecimento; os Ordenadores do Universo fazem-nos transpor as portas da Biblioteca de Alexandria, apresentando-nos a Calímaco de Cirene, que decidiu que era tempo de começar a pôr ordem nos livros; a viagem deste bloco olha ainda o poder simbólico dos livros, os muitos livros proibidos ao longo da história – e as várias queimas literárias ao longo dos tempos -, o importante papel das mulheres na revolução da leitura e na criação de novos estilos, a tradução como, tomando o exemplo de Rilke, “o supremo acto de compreensão”, ou até mesmo para a história do aparecimento dos óculos.
Para o capítulo final, intitulado Folhas de Guarda, Alberto Manguel diverte-se a desenhar uma outra História da Leitura, alternativa a esta, com novos personagens mas as mesmas inquietações, mostrando-nos que a história da leitura nunca acaba, e de que esta poderá ser sempre, mesmo em tempos que podem parecer pouco favoráveis à palavra impressa, um acto de subversão.
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