Em Abril deste ano, o Deus Me Livro esteve no IndieLisboa à conversa com Mia Couto a pretexto da apresentação do documentário “Sou autor do meu nome”, de Solveig Nordlund. Os meses passaram mas, aproveitando a publicação da crítica ao seu mais recente livro “O Universo num Grão de Areia” – um compêndio de textos seus escritos na última década -, fazemos agora uma espécie de 2 em 1. Qualquer coisa como um Especial Mia Couto.
“O Universo num Grão de Areia” | Mia Couto
Para muitos considerado embaixador da língua portuguesa e da cultura moçambicana, Mia Couto reúne, no seu mais recente livro – “O Universo num Grão de Areia” (Caminho, 2019) -, um conjunto de textos escritos, publicados e lidos nos últimos 10 anos. Sendo o terceiro livro do género, após a publicação de “Pensatempos” (2005) e “E se Obama fosse africano? e outras interinvenções” (2009), este mais recente lançamento confirma Mia Couto como pensador multifacetado, num exercício de cidadania e humildade, só possível pela sua capacidade de ler a realidade de forma empática e despretensiosa.
Os temas são vários: política, cultura, literatura, identidade, sistema bancário, corrupção, desenvolvimento, ética, preconceito e, como não podia deixar de ser, biologia. O melhor mesmo é pegar nestas mais de 260 páginas de informação, reflexão e, em certos momentos, comoção, e deixar-se ir passeando pelo mundo físico e o universo mais subjectivo da natureza humana. Mia Couto assume-se como interveniente social e político, como agente de reflexão e intervenção na mudança de mentalidade através da sua indignação, denúncia e afirmação de uma ética partilhada com várias partes da sociedade.
“Como militares sem farda, deixámos de questionar. Deixámos de fazer perguntas e discutir razões”
A actualidade premonitória do seu pensamento revela-se por vezes assustadora, em particular quando relembra o valor do tempo, especialmente o passado que suporta os desafios de um futuro que não se vê, porque sucessor de um passado que não se escutou – a ditadura do presente.
“Quem é cego para o futuro vive sem sonhos. Quem vive sem sonhos tem carências e urgências que podem encher praças e ruas de violentos protestos“.
Contra o conformismo ou amorfismo do alimento já processado, que protege da dúvida e incita à passividade, atribui aos moçambicanos o sentido da sua escrita, co-autores dos seus livros, mesmo sem saberem escrever, muitos sem saberem falar português. Trata-se do retrato de alguém que se afirma como poeta que escreve prosa, que considera a dramaturgia resultante de um acidente de percurso e o teatro um exercício imperfeito. Um orador que continua a sentir-se desamparado e que, por isso, humildemente se apoia no pensamento de outros.
“O percurso da minha vida fez de mim uma criatura de múltiplas fronteiras. Sou um africano filho de europeus. Sou um escritor numa nação que vive na oralidade. Sou um poeta que trabalha como cientista, sou um ateu numa sociedade profundamente religiosa“.
Ao escrever em revistas e jornais, realizar intervenções em meio universitário, realizar a apresentação de livros ou discursar em cerimónias de atribuição de prémios, Mia revela nos seus textos um reencontro reconciliador com o passado e um olhar comprometido com o futuro. Para tanto serve-se do presente como um exemplo de sucesso para os cidadãos do seu país – “existimos entre um passado falsificado e um futuro cego em que não nos vemos … à cata do passado porque nos falta o futuro“.
Impressiona a sua capacidade de produzir uma leitura abrangente e uma análise integradora do mundo, conseguindo fazer convergir, para um mesmo sentido, olhares e experiências diferentes. Inspira-se nos outros, independentemente das suas origens, tão depressa citando cidadãos anónimos como estadistas e artistas de vários quadrantes. Quem lê Mia Couto lê o mundo através da sua sensibilidade e inteligência.
“Antes de sermos escritores de livros nós somos leitores de uma mesma biblioteca feita de ecos, vozes e memórias”.
Entrevista: Mia Couto
Em Abril último estivemos no IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema 2019 à conversa com Mia Couto, a pretexto da apresentação do filme documentário “Sou autor do meu nome”, de Solveig Nordlund. Para Solveig, tratou-se de revelar a forma como alguém (Mia Couto) pode ser tradutor de um mundo, retratando-o através das suas estórias. Mia, por seu turno, vê-se como “porteiro de uma coisa que é maior; abro a porta de uma coisa que vai para além de mim próprio, um povo que é gente que tem um outro modo de olhar o mundo, que tem contribuições importantes, muito para além do exótico, um modo de ver o mundo que deve entrar em diálogo com outros modos de ver o mundo. Hoje a leitura que fazemos do mundo é muito dicotómica ou categorizada, entre a escrita e a oralidade, entre o pensar e o sentir, entre as estórias e a ciência”. Fica o resumo de uma bela conversa.
Que papel tem essa complementaridade (oralidade e escrita, tradição e modernidade) na sua escrita?
Quem quer contar uma história tem que romper com visões dicotómicas, repensar o quadro de pensamento, ser possuído pela história que se conta, estando disponível para desaparecer. Eu gostaria que a minha obra fosse mais do que o contributo de um viajante pelo povo moçambicano, de alguém à procura de redenção. Quando escrevo é como se o “outro” entrasse também um pouco dentro de mim, perdendo o medo das fronteiras que foram construídas, dos estereótipos. As histórias acontecem sem uma intenção prévia ou sentido de missão, mas antes um convite para deixar de ter medo em relação às nossas incertezas, às visões dicotómicas do mundo, à forma mecanicista e cartesiana de olhá-lo. A escrita pode ser uma forma quase terapêutica de olharmos para nós próprios e os outros.
Até que ponto se sente portador de um legado, de preservação de memória, estórias e cultura de um povo?
Na maior parte das línguas de Moçambique não há termo para designar futuro. O tempo é circular entre o passado e o agora, sendo o futuro tido como um não lugar, uma nova forma de ver o tempo. Há na construção do Moçambique presente uma séria amnésia, de esquecimentos que funcionam para mim como problema, mas que para os próprios podem ser simplesmente omissões de memória resultantes da escravatura e da guerra, uma memória selectiva. É difícil olhar o passado quando não se consegue projectar o futuro, é como se o passado é que nos ajudasse. Hoje percebe-se que estes mundos que estão em confronto (passado e futuro) podem em Moçambique sentar-se na mesma mesa e conversar, mostrando que não são assim tão opostos. Nesta matéria a literatura tem um papel importante, de tranquilizar e serenar, de transformar histórias em identidade e de humanizar o passado e a sua relação com o presente.
Alguma vez se sentiu como o biólogo das pessoas, aquele que estuda a morfologia, fisiologia e anatomia de um povo?
Foco-me mais nos comportamentos. Há na biologia uma cadeira que sugere que o homem deve ser estudado pelo seu comportamento animal, como acontece com o trabalho de Desmond Morris, entendendo os comportamentos com base na evolução, na sua capacidade de adaptação. Tento fazer casamentos. A biologia ajuda-me a entender a vida dos humanos, a forma como somos postos à prova, como reagimos como animais, as reacções, por exemplo fechados dentro de um elevador, postos à prova, calados, olhando para o chão pois é um território que está a ser disputado, há agressividades que têm que ser contidas e o sinal que dão para os outros é de aceitação da sua presença.
Entre a poesia, o conto, o romance e as crónicas, onde se sente mais confortável? Que função ou poder atribuiria a cada um dos géneros?
A poesia para mim acontece. O conto é mais espontâneo. O romance obriga-me a lutar contra mim próprio, pela disciplina que exige, é preciso fazer uma arquitetura a longo prazo, pedindo trabalho.
O que lhe falta fazer? O que precisa fazer?
Não é uma resposta fácil. Falta-me fazer tudo. Por exemplo agora estou a fazer um romance sobre a minha própria infância, mas sinto-me como se estivesse a escrever o primeiro livro, como se para atrás tudo tivesse sido apenas um ensaio. Quero manter essa relação com a fragilidade do que faço, quero manter esse “não saber”, convivendo com a ignorância; a ignorância é um estado que nos faz procurar, estar inquieto para procurar. Fiz trinta e poucos livros e tenho hoje o mesmo receio que tinha ao fazer o primeiro – e gosto de ter.
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