Entrar numa biblioteca, seja ela municipal ou privada, é como entrar numa densa floresta. E bem sabemos que cada floresta tem as suas particularidades e múltiplas espécies, ou seja, a densa floresta rapidamente se torna uma selva. A Literatura Universal (Cavalo de Ferro, 2018) – reedição) é essa selva e Hermann Hesse pretende torná-la, em “Uma Biblioteca da Literatura Universal” (Cavalo de Ferro, 2018), menos hostil. O autor, Nobel da Literatura em 1946, não dá receitas para encontrarmos os livros da nossa vida, apenas os incontornáveis, e desce cedo esclarece:
“Um elenco de livros cuja leitura seja absolutamente necessária e sem os quais não há saúde nem cultura não existe. Em vez disso, há para cada homem um notável número de livros nos quais precisamente ele, o indivíduo, pode encontrar satisfação e prazer. Descobrir gradualmente estes livros, entabular uma relação duradoura com os mesmos, possivelmente apropriarmo—nos deles pouco a pouco…”
Em pouco mais de uma dezena de pequenos ensaios, Hesse tece considerações sobre a importância dos clássicos, a paixão de ler e o possuir livros. E é essa a magia dos livros, serem capazes de se apropriar de nós, tanto ou mais do que nos apropriamos deles. É preciso espontaneidade e vontade no momento de lhes pegar: “A via que ele tem de percorrer é aquela do amor, não aquela do dever“.
No primeiro ensaio (1929) que dá título ao livro, Hesse afirma a necessidade do amor aos livros e ao acto da leitura, salientando que os livros mais velhos – ou os clássicos -, serão aqueles que menos envelhecem e que, talvez, provocaram maiores paixões. Ainda nesse texto, a lista cresce e enche os olhos do leitor, desde a Bíblia a Gilgamesh, passando pelas Mil e Uma Noites ou os populares contos dos irmãos Grimm. Mas as estantes ganham ainda mais pilares com os gregos e as suas tragédias ou os contos que remontam à mitologia, sem esquecer os romanos e as odes ao império.
A visita guiada é intensa e labiríntica e, já perto do fim, o autor questiona ainda as suas lacunas e enumera muitas mais referências. É inevitável a sensação de esmagamento, sobretudo quando o remate final é dado assim:
“Que cada um comece por aquilo que é capaz de compreender e de amar! Aprender a ler, no sentido mais elevado da palavra, nunca poderá ser feito por intermédio de jornais nem da literatura contemporânea que nos aparece à mão, mas somente através das obras-primas. Estas têm, por vezes, um sabor menos doce e menos picante do que as leituras que estão na moda. Querem ser levadas a sério, conquistadas. (…) Se nós queremos que as obras-primas nos demonstrem aquilo que vale, precisamos primeiro de lhes demonstrar o que valemos.”
Os ensaios seguintes salientam que os caminhos para chegar aos grandes são inúmeros e desafiantes, mas que pela persistência e paciência o leitor há-de achar o seu melhor caminho, seguindo o momento e consoante o humor – tal como a arte e o ofício de escrever. No pequeno ensaio “Do Escritor” (1908), a crítica social face às exigências ao escritor-jornalista espanta por ser tão actual e frisar a necessidade de os escritores não se deixarem levar por tendências, exigências e chantagens:
“A nossa profissão consiste em calar, em abrir os olhos e em esperar que cheguem as horas propícias – e então o trabalho, ainda que requeira suor e noites de insónia, é maravilhoso e já não é trabalho.”
Há sem dúvida uma brilhante argumentação por parte do autor, que não dispensa o elitismo quando afirma, por exemplo, que livro nenhum digno desse nome deve servir para distrair o leitor, apenas para concentrar, ao máximo, a nossa atenção: “É imprudente e nocivo desperdiçar o nosso próprio tempo em leituras sem uma finalidade concreta“. Parece redutor ou castrador, incómodo até. No entanto, o rumo que o texto leva, criticando tanto o estado da leitura como da escrita, deixa-nos a pensar no verdadeiro conteúdo da mensagem do autor: uma crítica facilmente extensível até aos dias de hoje.
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