“Na época em que escrevi este livro, eu não conseguia imaginar-me como uma escritora, especialmente de uma autobiografia. Quase meio século depois, mantenho a minha desconfiança em relação ao individualismo subjacente que define o género”. As palavras são de Angela Davies, então no prefácio de 2021 à terceira edição de “Uma Autobiografia” (Antígona, 2023), que publicou aos 27 anos muito graças ao embalo de Toni Morrison, que era então a sua editora. Talvez por isso, e como havia escrito num prefácio anterior de 1988, tenha dito isto: “Por isso, não escrevi verdadeiramente a meu respeito”.
Mais do que uma autobiografia, de uma vida então com menos de três décadas, este é um grito de revolta contra o racismo estrutural, o apontar do dedo aos movimentos radicais e opressores que, segundo Davies, “formaram e deformaram a vida de milhões de pessoas do meu povo”: “a violência da polícia, a violência das penitenciárias e prisões, e os caminhos complexos pelos quais essas formas de violência impregnam as comunidades que têm como alvo, às promovidas até pelos próprios indivíduos que são as suas vítimas”.
“Uma Autobiografia” é um manual de luta e sobrevivência, onde acompanhamos o tempo de prisão de Angela Davies, então uma das 10 pessoas mais procuradas do país, apontada como “a terrível inimiga comunista negra”; a sua filiação e militância no Partido Comunista, que abandonou em 1991 “após tentativas fracassadas de desenvolver estratégias de democratização interna”; as críticas ao sistema penal e prisional americano, “um covil de racismo”; as questões de género, centrais na obra de Davies, sobretudo em alguns dos seus mais importantes ensaios; a segregação a que foi sujeita, que ilustra com uma frase marcante: “A maioria das crianças negras do Sul da minha geração aprendeu a ler as palavras «de cor» e «brancos» muito antes de aprender o abecedário”; os anos que passou fora do país, que serviram de base para um regresso com uma missão de vida; os muitos assassinatos que marcaram a sua vida; um olhar sobre o ensino e a escola, que elege como “um lugar onde a compreensão política deveria ser forjada e apurada, onde a consciência se tornava explícita e era impelida numa direcção revolucionária”; ou, a certa altura, o seu ideal de revolução: “Para mim, a revolução nunca foi uma «tarefa» temporária antes de assentar; não era um clube de moda com jargão recém-cunhado, nem um novo tipo de vida social que se tornava emocionante pelo risco e pelo confronto, ou glamoroso pelo figurino. A revolução é uma coisa séria, a coisa mais séria na vida de uma pessoa revolucionária. Quando alguém se compromete com a luta, deve ser para sempre”. Um livro obrigatório.
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