No alpendre de uma mercearia, um grupo de homens e uma criança vêem passar um camião carregado com dez toneladas de sal. Com a curiosidade típica dos habitantes das terras pequenas, não resistem a segui-lo e deparam-se com uma cena impensável: o pequeno proprietário agrícola que encomendou tanto sal espalha-o pelos seus campos, abate os animais domésticos, destrói à machadada um relógio de parede, incendeia a casa e parte com a mulher grávida e um filho pequeno, sem dar aos conterrâneos qualquer explicação para tal comportamento.
Esta é a base da intriga de “Um Tambor Diferente” (Quetzal, 2021) do norte-americano William Melvin Kelley (1937-2017), que se desenrola em 1957, num Estado imaginário do Sul profundo dos EUA. O homem que destrói as suas terras é negro, chama-se Tucker Caliban e descende da figura lendária de um gigante africano que preferiu morrer a viver escravizado. As terras em causa foram compradas à família branca para a qual os seus antepassados trabalharam, tanto antes como depois da abolição da escravatura, e o relógio, oferecido pelo antigo patrão, fora transportado para a América no mesmo barco que o gigante rebelde. A razão para as acções de Tucker, que desencadeiam o êxodo de todos os negros da vila, pode ser gradualmente intuída pelo leitor, mas nunca é explicitada, o que deixa perplexa a população branca, cujo ponto de vista é o único que o autor apresenta, apesar de ele próprio ser negro.
Num tempo marcado por tensões raciais, existem na vila brancos progressistas que apoiam, em princípio, a luta dos negros por igualdade de direitos. Um interpreta o acto de Tucker como uma libertação, que lhe serve de exemplo para também se soltar das suas grilhetas. Outro compara o êxodo a uma retirada estratégica em situação de guerra. Todavia, mesmo aos que se consideram igualitários, ocorrem pensamentos que traem uma forma de “racismo suave” persistente, que o autor expõe brilhantemente, sem elaborar juízos de valor.
Outro elemento perturbador é a oposição que o autor estabelece entre “um negro sulista ignorante”, como Tucker, e aqueles que receberam uma educação formal e se organizam em movimentos reivindicativos. O Reverendo negro Bennett Bradshaw, que frequentou uma universidade e dirige uma associação, revela-se uma personagem desagradável, pronta a usar a religião para promover uma nova desigualdade que favoreça os seus interesses. Por seu lado, Tucker, que declara que ninguém luta pelos seus direitos e que não lhe interessa que os filhos recebam uma boa educação, é retratado como um homem digno, sendo clara a preferência do autor pela sua revolta espontânea, justificada pelo excerto de “Walden”, de Henry David Thoreau, que forneceu o título para o livro: “Se um homem não acerta o passo com os companheiros, talvez seja porque ouve um tambor diferente”.
Esta obra, publicada originalmente nos EUA em 1962, foi a primeira de Kelley e valeu-lhe grandes elogios da crítica. Eis chegada a oportunidade de resgatá-la do esquecimento em que caiu e (re)descobrir um autor que abordou com coragem temas difíceis com os quais ainda nos debatemos hoje.
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