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“Um Prego no Coração | Natureza Morta | Vício” | Paulo José Miranda

Por Julia Martins · Em 03/06/2020

Numa edição cuidada e com ilustrações de Tiago Albuquerque, a Abysmo reuniu “Um Prego no Coração | Natureza Morta | Vício” (Abysmo, 2019), três textos distintos, escritos em momentos diferentes, mas que poderão ser lidos como uma trilogia sobre o século XIX português, escritores e pensadores, artistas e criação artística, e que nos induz a uma reflexão sobre a vida e amor, a felicidade e a tristeza.

Um Prego no Coração é uma carta de 1880, escrita por Tiago da Silva Pereira, contemporâneo imaginário de Cesário Verde, “acerca de quase tudo, e quase nada acerca de O Sentimento dum Ocidental”, considerado por muitos o poema de excelência de Cesário Verde. Um poema longo, dividido em quatro partes e dedicado ao seu amigo Guerra Junqueiro, às sensações e inquietudes de olhar Lisboa ao anoitecer.

Tiago da Silva Pereira assume-se como um “leitor atento de poesia” e, numa epístola extensa, elegante, reflexiva e minuciosa, permite-nos “conhecer aquilo que funda as próprias coisas e as relações entre elas e as pessoas”, dissertando sobre o estilo que “condiciona o nosso olhar, a nossa atenção”, o papel da linguagem, mergulhando nas manifestações da consciência assim como no tempo e espaço, categorias tão relevantes no pensamento filosófico de Kant que Tiago Silva Duarte tanto admira: o tempo e o espaço, a vida e a morte.

A leitura do poema permite pensar a consciência da passagem, do espaço físico real e do espaço de evasão. O “tempo em si não é nada. O tempo é sempre tempo de alguma coisa”. É tempo do acto criativo, de a poesia ”mostrar o bem da metafisica, o mal necessário da moral”,  ligando-nos ao mundo, à cidade e à estética.

Natureza Morta é um magnífico texto sobre a apaixonante história de João Domingos Bomtempo, figura proeminente da História da Música em Portugal, pianista comparado a “Camões do piano, dos violinos e dos oboés”, um inovador enquanto criador e intérprete. Obteve grande sucesso no estrangeiro, regressando a Portugal após as Invasões Francesas. “Fosse como fosse, não podia deixar de ser português. É um cheiro etéreo a passado que nos acompanha toda a vida”. Na sua pátria encontra miséria e sofrimento e, numa tentativa de evasão reflexiva, compõe um Requiem – afinal, a música “era uma beleza constrangedora, doce e grave, como o anjo que nos há-de vir buscar, que nos há-de levar para o infinito pó, para o definitivo não”.

Uma narrativa sobre a melancolia da vida e a certeza da morte, entregue “à totalidade de um finitude que me comprime até à imobilidade”, à estética de grandes obras musicais como Arte da Fuga de Bach, Requiem de Mozart, Variações de Goldberg, Hallelujah de Handel ou a música de Scarlatti, entre outras.

Em Vício, o poeta-filósofo Antero de Quental, homem amargurado e sem esperança, regressa à cidade natal, Ponta Delgada, após três dias de viagem. Um regresso que era “acima de tudo a total recusa da literatura, da filosofia e da poesia. A recusa das Letras e das Artes. Porque um homem não pode escrever para sempre. Os seus últimos anis de vida deverão estar ausentes de qualquer criação do espírito”. Num diálogo introspectivo, assume as letras como o seu vício, “tão medonho quanto o jogo. Ler é já perder-se”. A releitura e a análise de excertos de O Primo Basílio, são um pretexto para “mostrar a alma humana na sua dificuldade em existir”.

Um Prego no Coração, Natureza Morta, Vício, Paulo José Miranda, Deus Me Livro, Crítica, AbysmoUm texto que é um regresso a casa, a si próprio. Um exercício de memória, uma espécie de balanço de vida. Isto sem nunca esquecer o vício da leitura, propondo de forma inconsciente um percurso interpretativo de obras de alguns autores – mas sobretudo o prazer escrita e da língua. Um texto literário mas, na sua essência, filosófico.

O autor escreve de forma singular, expressiva, intimista, reflexiva e encantadora, numa escrita que encanta pela sua imaginação e rigor narrarivo, procurando a unidade na multiplicidade dos textos e autores. Paulo José Miranda seduz-nos e leva-nos a desvendar os mistérios da interrogação e da existência, exortando à interpelação da vida, da morte e da criação artística.

Paulo José Miranda nasceu na Aldeia de Paio Pires, no Seixal. Licenciou-se em Filosofia e, em 1997, publicou o primeiro livro de poesia, A Voz Que Nos Trai, com o qual venceu o primeiro Prémio Teixeira de Pascoaes. Em 1999 e já a residir em Istambul, na Turquia, tornou-se também o primeiro vencedor do Prémio José Saramago, com a novela Natureza Morta. Viveu noutros locais como Macau e Brasil, sempre a escrever, oscilando entre poesia, ficção, teatro e ensaio. Em 2015 recebeu o Prémio Autores, da Sociedade Portuguesa de Autores, pelo livro de poesia Exercícios de Humano. Actualmente vive em Portugal.

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Julia Martins

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