Será, de todos os livros de contos de Mariana Enriquez, o fisicamente mais visceral, instalando um cenário de terror corpóreo capaz de arrepiar muito bom leitor. Reunindo uma dúzia de contos, “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” (Quetzal, 2024) é mais um festim de requinte macabro e sedução gótica, que mantém a escritora argentina no patamar destinado aos grandes nomes da literatura actual.
Na sombra carregada do fascismo, “Os meus mortos tristes” apresentam-nos a uma cuidadora de fantasmas, num retrato cirúrgico e desalentado de Buenos Aires que é, também, um mergulho no medo e na falta de empatia; sob a influência assumida de Mildred Burton, avistamos da margem de um rio “Os pássaros da noite” que, numa outra vida, foram todos mulheres. Tudo para acompanhar uma narradora que acredita que também ela se transformará num pássaro, esperando pela transformação numa casa “cheia de farrapos de mim própria”, ecos de uma doença de pele que a avó acredita ser contagiosa; “A desgraça na cara” sussurra-nos segredos familiares e consentidos, numa história de violação que é também “a história de uma louca, de uma linhagem de mulheres loucas”; “Julie” conta-nos um regresso – dos Estados Unidos à Argentina -, num conto sobre doenças mentais e o modo como o estatuto impera sobre sobre a humanidade; “Metamorfose” é prosa para duros, com “qualquer coisa de camaleão”, onde vemos a retirada de um útero devido a um mioma; em “Um lugar luminoso para gente sombria” acompanhamos o regresso de uma jornalista a Los Angeles, oito anos depois da morte de alguém muito próximo, numa investigação sobre a mítica história do desaparecimento de uma rapariga num hotel da baixa, afogada num depósito de água; “Os hinos das hienas” acompanham o relato de um fogo (provavelmente) posto, e o riso de hienas em fuga que, por vezes, é escutado no interior de uma casa abandonada, geografia de tortura e de fantasmas; “Diferentes cores feitas de lágrimas” é um desfile de vestidos e roupas vintage, preparado por alguém com uma assumida aversão a velhos; “A mulher que sofre” troca-nos as voltas e as linhas telefónicas, fazendo-nos contemplar o reflexo de um tipo que chora diante de um espelho; “Cemitério de frigoríficos” é um dos melhores espécimes desta antologia, recuperando um crime com mais de três décadas num (falso) acto de contrição sobre a culpa e o arrependimento; em “Um artista local” acompanhamos Ivana e Lautaro, que “gostavam de entrar no carro, fechar as janelas e cantar”, e que decidem visitar General Moose, uma aldeia da província com cerca de 300 habitantes que investiu no turismo, ainda que as camas não tenham lençóis e a água da piscina seja esverdeada; a fechar temos “Olhos negros”, conto sobre mendigos e o mal que brilha no olhar negro de dois rapazes com a idade de um dígito.

Antes da leitura deste volume, recomenda-se uma espreitadela à página dos agradecimentos, na qual Mariana Enriquez elenca a companhia musical que teve durante a escrita dos contos, e que poderá servir de banda sonora durante a leitura – há, entre outros, Lucinda Williams, Suede ou The Velvet Underground. Para ler à luz das velas.
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