Longe vão os tempos em que o norte-americano Paul Auster era dado à economia, escrevendo com parcimónia no seu Caderno Vermelho, contando uma história de amizade entre espécies em Timbuctu ou comprimindo uma trilogia sobre a grande maçã em pouco mais de trezentas páginas.
Em 2017, depois de quase sete anos de silêncio no campo do romance, regressou com “4321”, um livro com o perfil e o tamanho de uma Bíblia que, apesar de manter todos os rendilhados e referências geográficas e culturais dos seus livros, surpreendeu por juntar, nas quase 900 páginas da edição portuguesa, um livro de memórias, um guia sexual e um exercício sobre o tempo, imaginado a partir de uma vida que se vê multiplicada em quatro diferentes possibilidades.
Quatro anos após“4321”, Paul Auster deixou pendurada a vida de romancista e decidiu escrever sobre a vida de Stephen Crane (1871-1900), personagem um pouco esquecido da literatura americana que, de acordo com muito boa gente, foi o responsável pela transformação da literatura americana. Conhecido como o autor do clássico de guerra “A Insígnia Vermelha da Coragem”, escreveu, na sua breve passagem pelo planeta – morreu de tuberculose aos 28 anos -, contos, novelas, poemas, peças de jornalismo e reportagens de guerra.
“Nascido no Dia dos Mortos e morto cinco meses antes do seu vigésimo nono aniversário, Stephen Crane viveu cinco meses e cinco dias no século xx, desfeito pela tuberculose antes de ter oportunidade de conduzir um automóvel ou ver um avião, ver um filme projectado no grande ecrã ou ouvir um rádio, uma figura do mundo antigo que perdeu o futuro que aguardava os seus pares, não só a construção destas máquinas e invenções milagrosas, mas também os horrores da época, incluindo a destruição de dezenas de milhões de vidas nas duas guerras mundiais. Os seus contemporâneos foram Henri Matisse (vinte e dois meses mais velho do que ele), Vladimir Lenine (dezessete meses mais velho), Marcel Proust (quatro meses mais velho) e escritores americanos como W. E. B. Du Bois, Theodor Dreiser, Willa Cather, Gertrude Stein, Sherwood Anderson e Robert Frost, que perduraram, todos, largos anos no novo século. Mas a obra de Crane, que fugia às tradições de quase tudo o que viera antes dele, era tão radical para a época que ele pode agora ser considerado o primeiro modernista americano, o principal responsável por mudar a forma como vemos o mundo pelo prisma da palavra escrita.”
É assim que arranca “Homem em Chamas” (Asa, 2021), uma monumental biografia assinada por Auster que, na edição portuguesa e em letra miúda, se estende para lá das 850 páginas. Um projecto que Auster decidiu assumir após a retirada de “A Insígnia Vermelha da Coragem” da lista de livros escolares de leitura obrigatória, ficando a missão literária, segundo ele, “nas mãos dos especialistas”.
Trata-se de um livro onde Auster cruza, com muito jogo de cintura, a veia ficcional, o relato biográfico e a crítica literária – é quase um tratado -, fazendo uma ponte entre a vida de Crane e toda a sua obra, dando carne e osso a muitos dos seus personagens e geografias. Uma vida que teve tudo para ser um romance, e que Auster descreve de forma entusiasta ao leitor: com 20 anos, Crane escreve um artigo que destabiliza a campanha presidencial de 1982; exila-se após uma disputa com a polícia de Nova Iorque por causa de uma prostituta; tem uma paixão infeliz com uma jovem de classe alta; quase morre num naufrágio; enfrenta o fogo inimigo para relatar a guerra Hispano-Americana; muda-se para Inglaterra com uma proprietária de bordéis; priva com Joseph Conrad e Henry James, que chorarão a sua trágica e prematura morte. A todos estes incríveis episódios Auster acrescenta os eternos interesses e ocupações de Crane, as suas obsessões e marcas estilísticas, os muitos erros que dava, a predilecção pelo atordoamento em detrimento do encanto, as relações e as dinâmicas familiares – nem sempre fáceis –, as diferenças entre o Crane escritor e o Crane homem ou a forma como a cor desempenhou um papel fulcral na sua escrita.
A encerrar esta viagem literária, Paul Auster regressa ao início, falando da forma como Stephen Crane vem sendo tratado na América ao longo dos anos e da necessidade de, em tempos sombrios, ressuscitarmos este homem em chamas:
“Ele não era ninguém e depois foi alguém. Foi adorado por muitos, desprezado por muitos e depois desapareceu. Foi esquecido. Foi recordado. Voltou a ser esquecido. Voltou a ser recordado, e agora, enquanto escrevo as últimas frases deste livro nos primeiros dias de 2020, os seus livros voltam a cair no esquecimento. São tempos sombrios para a América, tempos sombrios em todo o lado, e com tanto a acontecer para corroer as nossas certezas quanto a quem somos e aonde vamos a seguir, talvez tenha chegado o momento de desenterrar do seu túmulo o homem em chamas e recomeçar a recordá-lo. A prosa ainda crepita, o olhar ainda é cortante, a obra ainda agrilhoa. Ainda algo disto nos interessa? Se sim, e só se pode esperar que sim, deve ser prestada atenção.”
Em Portugal, o primeiro passo para a ressurreição do homem em chamas foi dado pela Guerra & Paz, que, na sua colecção designada de Admirável Mundo do Romance, publicou “Maggie, uma rapariga das ruas”. Um livro que, nas palavras de Auster, é “passado no inferno”, “um clarão absoluto de vermelho ofuscante”, que “trespassa o coração” e “grita e atordoa-nos até nos subjugar”. Venham mais destes livros em chamas.
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