“É um senhor“. Uma frase que costumamos ouvir mais a norte de Portugal e que assenta, que nem uma luva branca, ao conde Aleksandr Ilitch Rostov, protagonista máximo de “Um Gentleman em Moscovo” (D. Quixote, 2018), um requintado romance assinado pelo americano Ame Towles, atravessado por uma corrente de ar soviética, que se transformou num gigantesco bestseller.
Quando regressa de Paris a Moscovo, no ano de 1922, Ilitch é levado perante a Comissão de Emergência do Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, tudo devido a um poema escrito por ele em 1905 que lhe vale a condenação, pelo tribunal bolchevique, a prisão domiciliária por tempo indeterminado no sumptuoso Hotel Metropol. E isto apenas porque algumas esferas do partido o consideram “um dos heróis da causa pré-revolucionária“, caso contrário iria a caminho da Sibéria com bilhete apenas de ida. “Porque razão regressou?”, perguntam-lhe. Para pegar em armas? Fazer a revolução? A resposta de Ilitch é desarmante e deliciosamente provocadora: “Tinha saudades do clima“.
Porém, os efeitos da sentença fazem-se sentir mesmo no hotel. Da mais confortável suíte, Ilitch é mudado para um quarto andrajoso, podendo ficar com os pertences que lá conseguir enfiar – tudo o resto permanece “propriedade do povo“. E, ao contrário de Edmond Dantès, cuja mente permaneceu lúcida por se agarrar à ideia de vingança, ou mesmo de Cervantes, que se apegou à promessa de escrever quando se viu escravizado por piratas em Argel, ilitch decide ser antes um Crusoe.
“Pondo de lado os sonhos de um resgate rápido, os Crusoes do mundo procuram abrigo e uma fonte de água doce; aprendem sozinhos a fazer fogo com uma pedra; estudam a topografia da sua ilha, o clima, a flora e a fauna, sem que os seus olhos deixem de procurar velas no horizonte e pegadas na areia.”
O Metropol será assim a ilha de Ilitch, transformada em mundo com a ajuda dos muitos aliados que vai encontrando: o chef, os porteiros, o barbeiro, o encarregado da garrafeira. Isto enquanto toma sob a sua protecção uma menina desamparada, filha de Nina Kurikova, alguém que abraçou a revolução mas que, antes disso, viveu um sem número de aventuras com Ilitch, acabando por lhe confiar uma chave mestra que abre todas as fechaduras do Metropol. E há, também, Mikhail Fiodorovitch – ou Michka -, que percorre quilómetros enquanto fala, um amigo de Ilitch que passou 8 anos preso.
Neste romance sentimental, onde as transformações da Rússia são sentidas entre paredes, ecoam os contos de Tchékhov, folheiam-se os romances de Tolstoi, flutua o espírito musical de Tchaikovski, disseca-se a palavra camarada, servem-se iguarias sempre regadas com bons vinhos – sem rótulo e todos ao mesmo preço -, num livro que, a certa altura – e numa jogada de grande mestria -, promove uma viagem do narcisismo inconsciente ao altruísmo assumido. Um senhor livro.
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