“De facto, ao folhear alguns dos livros mais antigos, as respectivas capas cor de laranja desintegraram-se e as páginas começaram a desfazer-se-lhe sob as pontas dos dedos. Sucumbindo já ao fog111o lento, a acidificação do papel a corroer as páginas, tornando-as finas e quebradiças, destruindo-as a partir do interior. Era incrivelmente triste imaginar que todas essas palavras, todas essas histórias, estavam a desaparecer aos poucos.”
É um verdadeiro fenómeno de culto no Reino Unido e mais além, contabilizando, desde o ano de 1997, qualquer coisa como 22 temporadas. Baseada nos livros do Chief Inspector Barnaby, assinados pela escritora inglesa Caroline Graham, a série Midsmomer Murders – que, em Portugal, poderá ser vista no canal Fox Crime – transporta-nos ao verdejante e muitas vezes chuvoso campo inglês, num condado fictício onde, de galochas e impermeável, assistimos de sofá a suicídios, mortes por acidente e homicídios mais ou menos elaborados, cada um deles resolvido na duração de um episódio.
Paula Hawkins não nasceu num condado inglês – nasceu e foi criada no Zimbabué, antes de se mudar em 1989 para Londres -, seja ele fictício ou real, nem se aventurou ainda no guionismo televisivo, mas os seus livros têm muitos dos ingredientes que encontramos em Midsomer Murders: o humor negro tipicamente brit, personagens metediços, a vingança sempre à espreita, chávenas de chá servidas a toda a hora e uma capacidade tremenda de fazer do assassinato um motivo de festa e entretenimento.
“Um Fogo Lento” (Topseller, 2021), o terceiro livro de Paula Hawkins – depois de “A Rapariga no Comboio” e “Escrito na Água” -, leva-nos a Londres para atirarmos pedras ao Tamisa, lugar onde, num barco-casa não muito glamoroso, é encontrado “um rapaz – não era um rapaz; um homem novo, na verdade – estendido no chão, sangue por toda a parte, um sorriso rasgado no seu pescoço”. As palavras pertencem a Miriam, considerada por muitos a metediça lá do sítio, alguém com a vida mal resolvida e a quem se tem por hábito dedicar poucos elogios: “uma solteirona gorda, dessas que gostam de abraçar as árvores, de tricotar os seus próprios iogurtes e de bisbilhotar a vida dos vizinhos”.
Para além de Miriam, “Um Fogo Lento” é habitado por uma série de personagens, sobretudo femininas, todas elas na mira da inspectora Chalmers, que tem aqui um caso bem bicudo: Laura, uma jovem problemática, que foi vista com a vítima – Daniel Sutherland – no dia da sua morte e possui um CV verdadeiramente impressionante: “Embriaguez na via pública, pequenos furtos, invasão de propriedade, vandalismo, conduta escandalosa”; a já muito desmemoriada Irene, a quem Laura faz as compras de quando em vez, e que era a melhor amiga de Angela Sutherland, a mãe de Daniel, também falecida há pouco tempo; Carla – ou Sra. Myerson -, a ocupada e estilosa tia de Daniel; e Theo, o marido de Carla, um escritor que parece ter perdido a inspiração depois de um livro que virou bestseller.
Num livro marcado por ressentimento, vingança, inveja, ódio, abandono, impotência, segredos, dramas familiares e trauma, Paula Hawkins diverte-se a brincar com o leitor, seja quando diz que “os acidentes acontecem, em especial com pessoas embriagadas. Mas mãe e filho, no espaço de oito semanas? Numa obra de ficção, isso jamais seria aceite como credível”, ironizando sobre a leitura mainstream – “nem imaginam a palha que é publicada sob a alçada da ficção comercial” – ou quando, através de Irene, volta de cabeça para baixo o género policial: “Afinal, qual era o problema do romance policial tradicional, com o bem a prevalecer e o mal a ser derrotado? O que importava que as coisas fossem assim na vida real?”. Se Ruth Rendell é considerada a Rainha do Crime do Reino Unido, Paula Hawkins é, por estes dias, a sua Princesa.
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