Constituído por textos curtos, gerados em diferentes contextos, agrupados como um conjunto de reflexões e balanços, o mais recente livro de Luís Filipe Castro Mendes (LFCM) é uma boa surpresa, que convida a partilhar alguns dos tópicos aqui reunidos. São micro-ensaios, crónicas e outros formatos breves, ajudando a conhecer um pouco melhor a Oficina de escrita e as leituras do poeta. Chama-se “Um Estranho Animal de Duas Cabeças” (Editora Labirinto, 2023), e foi publicado na Editora Labirinto.
O estranho animal a que o título faz menção é um artifício que o autor encontra para, por via dessa figura (mais presente em diferentes épocas e latitudes do que se poderia supor), discorrer sobre a sua própria dupla condição, que norteia a sua produção literária (e intelectual): “o diplomata é apenas o profissional que coexiste com o poeta – como nós coexistimos com os vários e diversos “eus” de que somos feitos”, pretende o autor resumir, embora deixando no ar uma certa blague.
A lista de figuras que partilha esta dupla condição (poeta e diplomata) é deveras interessante e surpreendente, porque se “em Portugal, diplomacia e literatura apontam-nos sempre em primeiro lugar para a figura do ilustre membro da carreia consular (na altura separada da carreira diplomática) José Maria Eça de Queirós”, se nos cingirmos apenas aos exemplos portugueses, a genealogia elencada começa pelo Padre António Vieira, alinhando a Marquesa de Alorna, Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, Abel Botelho, Wenceslau de Moraes, António Patrício, António Feijó, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, Marcello Mathias e Marcello Duarte Mathias (pai e filho), Álvaro Guerra, José Fernandes Fafe, José Augusto Seabra, José Cutileiro e Paulo Castilho.
Os primeiros textos aqui alojados versam sobre a relação com a poesia, reflectindo sobre a génese do poema, a sua necessidade, a sua contingência, o seu alcance ou a sua pertinência – tudo sob a lupa da subjectividade de quem escreve, mas trazendo para a equação outros autores e outras considerações. “Paul Valéry dizia que a poesia é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”, evoca LFCM, introduzindo (de algum modo) a dualidade entre forma e conteúdo. Traçando algumas pistas sobre a sua relação com poetas e “escolas”, o autor de “Outro Ulisses Regressa a Casa” passeia-nos pelo séc. XX, na sua evolução e dimensão de transformação, colocando em realce alguns diálogos (ou, no mínimo, dialécticas), como o Surrealismo face a Fernando Pessoa. “Chegados que fomos aos anos sessenta do século passado, um poeta da minha idade só pode dizer que esgotou até agora os seus pais poéticos e chegou nesta fase aos seus irmãos mais velhos, depois aos seus companheiros de geração e enfim aos jovens, aqueles que reinventam a poesia portuguesa nas suas palavras de hoje”, sintetiza.
A poesia moçambicana, entrelaçada na inevitável diáspora linguística (“quando Rui Knopfli chama pátria a um lugar onde uma só e várias línguas eram faladas ele encontra eco em Mutimati Barnabé João, quando este diz que na cabeça de um homem há muitas línguas a falar diferente”), uma atenção especial a João Cabral de Melo Neto (cujo conselho “seja sempre cônsul, nunca aceite ser embaixzador, que isso faz mal à poesia”, reconhece não ter seguido), a liberdade intrínseca à poesia ou a dupla Jorge de Sena/ Sophia de Mello Breyner Andresen, servem de mote a outros textos.
A discreta presença permanente do homem político e essa já referida defesa da simbiose entre poesia e liberdade estão bem patentes no artigo “O Exilado de Bougie” (inicialmente publicado no Diário de Notícias, a 14 de Dezembro de 2021). Numa primeira passagem, LFCM discorre sobre a importância da deslocalização: “Quem viveu boa parte da vida fora do seu país deixa de acompanhar o pulsar quotidiano da terra a que pertence e instala-se na ambígua posição de quem passa a pertencer ao mundo. Para nascer Portugal; para morrer o mundo – esta máxima do Padre António Vieira resume o destino dos que se fazem estrangeirados, dos que estão sempre fora por não terem entendido nem acompanhado os pactos e os ritos quotidianos que o tempo foi tecendo lá no lugar donde partiram e acabam por ficar de lado, com o sentimento de não fazer parte do enredo nos seus momentos decisivos”.
Mais à frente, ainda sob a influência de uma possível segunda leitura desta passagem, escrita pelo punho de quem, ele próprio, passou grande parte do seu percurso profissional além-fronteiras (e assim regressamos à contingência de ser um diplomata), lemos um intenso parágrafo, em defesa de Manuel Teixeira Gomes, o âmago deste texto: “É verdade que Teixeira Gomes não teve apenas o ónus de ser esquecido pelas gentes de letras: como político que foi, teve direito a uma repugnante campanha de ataques e insinuações pessoais, que o ousado amoralismo da sua obra e da sua concepção da vida vieram acicatar nas mentes estreitas do seu tempo”.
E este é também um livro do seu tempo – “seu” do livro e “seu” do autor, que aqui maneja distintas linhas raciocínio, acabando por tecer um território pessoal e pessoalizado, ou seja, dando uma nova vida aos textos já escritos, pela sua convivência entre si.
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