Em “A Biblioteca à Noite”, traçou a sua visão da história das bibliotecas e dos mitos associados aos livros, bem como o fascínio e os enigmas que a literatura reserva, num amor que, diz, tem de ser aprendido; ao embalar 35 mil livros, reflectiu sobre a sua relação com os escritores, a literatura e os livros, onde cabem bibliotecas públicas, escolares, virtuais, as “dez bibliotecas famosas”, acontecimentos históricos catastróficos, memórias ou, simplesmente, pequenas anotações ou lembretes, inscritas na biblioteca ou na margem de um livro – disponíveis em “Embalando a Minha Biblioteca”; “Monstros Fabulosos” deu-nos um pequeno catálogo de algumas das personagens literárias que ganharam vida para além das páginas, e que permanecerão para sempre connosco, leitores; dedicou também sete anos ao que inicialmente iria ser um ensaio, mas que cresceu e se tornou “Uma História da Leitura”, uma viagem de assombro que durará mais de seis mil anos, das tábuas de barro aos livros digitais e mais além. Agora, poderemos ler “Um Diário de Leituras” (Tinta da China, 2022), publicado vinte anos depois de ter sido escrito, e ao qual Alberto Manguel acrescentou, exclusivamente para a edição portuguesa, o livro do qual muitos alunos de português fugiram no Secundário: “Viagens na Minha Terra”.
Entre Junho de 2002 e Maio de 20003, Alberto Manguel regressou todos os meses a um livro, acabando por escrever um diário de releituras a que acrescentou geografias, estados de almas e, claro, listas, sempre presentes no seu universo: “Há algum tempo, depois de fazer 53 anos, decidi reler alguns dos meus velhos livros preferidos e surpreendeu-me, uma vez mais, a maneira como os seus mundos do passado, intrincados e estratificados, pareciam reflectir o triste caos do mundo em que vivo. Certa passagem de um romance iluminava subitamente um artigo no jornal; uma cena ficcional lembrava um episódio já quase esquecido; uma única palavra lida desencadeava uma longa reflexão. Decidi manter um registo desses momentos”. No final, mesmo que duas décadas se tenham atravessado pelo meio, há algo que permaneceu (quase) igual: “Muito mudou na minha vida e no mundo, mas os meus livros preferidos permanecem essencialmente na mesma”. E que livros atingiram, com Manguel, a imortalidade?
“A Invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares, “a história de um homem encalhado numa ilha aparentemente habitada por fantasmas”. Um livro lido numa altura em que regressa a Buenos Aires pouco tempo depois de se ter instalado em França, sentindo-se quase um estrangeiro numa cidade que já foi a sua – “…não vejo o crescimento dos bairros de lata, os hospitais em que falta tudo, as falências, a classe média na fila para a sopa dos pobres” – e apontando o dedo a quem deu cabo do país: “A Argentina já não existe e os canalhas que a destruíram continuam vivos”. Quem sabe, talvez a doença da ilha de Casares seja a mesma que assola o país, matando “de fora para dentro”;
“A Ilha do Dr. Moreau”, de H.G. Wells, encontra Manguel em Londres, falando sobre o prazer irrepetível da primeira leitura, insurgindo-se contra o resumo dos livros e o sabotar da memória: “Não gosto que me resumam livros. Prefiro que me tentem com um título, com uma cena, uma citação, sim, mas não com a história toda. Amigos entusiastas, as frases nas badanas, os professores e as histórias da literatura destroem grande parte do nosso prazer de ler se nos revelarem a intriga”. Quanto a esta ilha, é para Manguel um romance de certa forma Kantiano, onde “o drama surge da tensão entre aquilo que o protagonista acredita e o que o leitor sabe”;
“Kim”, de Rudyard Kipling, fez parte de uma colecção de 25 volumes da obra de Kipling, publicadas em Bombaim em 1914, “um dos raros livros que nunca me deixou de deliciar: torna-se mais acolhedor a cada nova leitura”. Aqui, Manguel aproveita para mostrar a sua aversão por glossários, dizendo confiar no contexto como clarificador do sentido;
Com o terrorismo e o ódio como pano de fundo, Manguel parte de “Memórias d`Além Campa, de François-René de Chateaubriand, para apontar o acto de recordar como a condição máxima, num livro que recorda sobretudo pelo “tom persistentemente elegíaco”;
“O Signo dos Quatro”, de Sir Arthur Conan Doyle, é espremido por Manguel como “a procura do equilíbrio como cura do ennui”, ele que fala de Holmes como um “…herói trágico, sentindo-se encurralado num mundo asfixiante, sofrendo da dor de existir”. Fala-se ainda de bibliotecas imaginárias, de anti-semitismo no século XIX e de livros policiais;
Do destino como história, da leitura como associação. E de “As Afinidades Electivas”, de Johann Wolfgang von Goethe, como o lugar onde “o fracasso é intrínseco à natureza das personagens”, sendo “nesse fracasso que reside o êxito do romance”;
A releitura de “O Vento nos Salgueiros”, de Kenneth Grahame, passa-se durante o sonho francês de Manguel, que tempo depois viria a eclipsar-se. Um livro que Manguel relaciona com a ideia de lar, e sobre o qual fala com especial carinho: “…sempre senti ternura pelo livro, sem saber ao certo porquê”;
“Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes ,livro que é uma luta permanente contra a injustiça (mesmo com o combate perdido à partida), serve para Manguel discorrer de forma genial sobre Cervantes, transformando-o numa nota de rodapé, quase um fantasma, à custa de um herói maior: “A maioria dos escritores possui uma presença histórica. Não é o caso de Cervantes, que, na minha memória, é mais uma personagem em Dom Quixote do que um homem real. Goethe, Melville, Jane Austen, Dickens, Nabokov são escritores de carne e osso mais ou menos reconhecíveis; Cervantes parece-me inventado pelo seu livro”;
“O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzatti, é um lugar que Manguel compara a outros lugares de “fim de mundo” como a Terra Nova, “que parece impossível de deixar, mas também impossível de alcançar, um lugar tão ancorado na sua própria rotina que nada de fora o pode atingir”;
“O Livro de Almofada”, de Sei Shonagon, foi uma recomendação literária que chegou de Silvina Ocampo: “Vais gostar, porque gostas de fazer listas”. Nesta almofada deitam-se 164 listas, sendo para Manguel “o livro perfeito para ler em tempos de fragmentação”. Um texto onde a Guerra do Iraque surge de forma mais evidente, voltando por várias vezes à escrita deste diário.
“Ressurgir”, de Margaret Atwood, foi “o primeiro romance que li com plena consciência de ser canadiano”, através do qual Manguel nos convida a pensar sobre o conceito de nacionalidade: “…não é evidente em si mesmo, como os conceitos de auto-biografia ou de efabulação”;
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Joaquim Maria Machado de Assis, descrito como “uma miscelânea de capítulos muito curtos que pouco mais são que notas, pedaços de diálogos, cenas de amor interrompidas, breves esboços de personagens e mini-ensaios, constituindo o conjunto a autobiografia de um herói reticente, o melancólico Brás Cubas, já morto quando o livro começa”;
E, por último, o mais recente – 2021 – “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett, onde Alberto Manguel lança um olhar profundo sobre o não progresso, oferecendo também um primeiro olhar sobre o seu primeiro ano em Portugal, a formação da Europa e a ambiguidade geográfica dos nossos dias. Para os leitores de Manguel, trata-se de mais um livro obrigatório, convidando a novas (re)leituras – e, quem sabe, à escrita de um diário.
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